Correio da Cidadania

Feliz 2008

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Por que o réveillon provoca tanta fissura? O que há de especial em se trocar de ano? Nada, exceto a convenção numérica, invenção indo-arábica, que nos permite codificar o tempo em horas, minutos e segundos, e estabelecer, segundo o movimento de nosso planeta em torno do sol e as fases da lua, calendários que repartem o tempo em ano de doze meses, mês com cerca de 30 dias, e dia com exatas 24 horas.

Ocorre que não somos trilobitas, e sim humanos, dotados da capacidade de imprimir ao tempo caráter histórico e, à história, sentido. O réveillon é, pois, um rito de passagem. Ressoa em nosso inconsciente o alívio por terminar um ano de tantos revezes, perdas, sofrimentos; e celebrar conquistas, avanços e vitórias. Há que soltar fogos, inundar cálices, expressar bons propósitos às divindades que povoam nossas crenças, vestir-se de branco como sinal de nossa primeira comunhão com o novo ano que se inicia.

Vivemos premidos pelo mistério. Como as partículas subatômicas, somos regidos pelo princípio da indeterminação. Essa impossibilidade de prever o futuro suscita angústia, o que nos induz a tentar decifrá-lo por via da leitura dos astros e das cartas, da sabedoria de videntes, dos búzios dos pais e mães de santo, da rogação aos nossos santos protetores.

Esta uma paradoxal característica da pós-modernidade: em plena era da emergência da física quântica e da falência do determinismo histórico como ideologia, acreditamos que o nosso futuro está escrito nas estrelas. Daí a inércia, a indignação imobilizadora, a impotência frente aos escândalos éticos e ao descaramento com que corruptos são absolvidos por seus pares, essa letargia que em nada lembra o que se deveria comemorar neste ano: os 40 anos de Maio de 1968.

Nos países industrializados, Maio de 68 é o paradigma da rebeldia, o grito parado no ar enfim sonorizado nas manifestações estudantis, os EUA derrotados pelos vietnamitas, os Beatles reinventando a canção, a moda subvertendo parâmetros, as mulheres a conquistar o direito de se apaixonarem pela primeira vez inúmeras vezes, a castração do machismo, a emergência esotérica.

Do lado sul do planeta, os anos de chumbo, os generais metendo no coldre as chaves dos parlamentos, a utopia dependurada no pau-de-arara, as rotas do exílio a se multiplicarem, os mortos e desaparecidos enterrados nos arquivos secretos das Forças Armadas. Ainda assim, havia sonho, e não era motivado pela ingestão química, brotava da fome de liberdade e justiça, fomentava o desejo irrefreável a adjetivar de novo a criatividade incensurável - o cinema, a bossa, a literatura, o tropicalismo.

No passado, o futuro era melhor. Hoje, imersos nessa sociedade da hiperestetização da banalidade, na qual as imagens contraem o tempo e a WEB virtualiza o diálogo na solidão digital, andamos em busca de uma razão de viver. Perdemos o senso histórico, trocamos os vínculos de solidariedade pela conectividade eletrônica, vendemos a liberdade por um punhado de lentilhas em forma de segurança.

Em 2008, seremos chamados às urnas municipais. Haveremos de tentar discernir os idealistas dos arrivistas; os servidores públicos dos que se afogam no ego destilado na embriaguez dos aplausos; os movidos pela intransigência dos princípios éticos dos que miram os recursos do Estado como carniça fresca ofertada à sua gula insaciável.

Ano de comemorar os 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos - que, para vergonha de nós, católicos, até hoje não mereceu a assinatura do Estado do Vaticano.

Neste mundo de atrocidades, não há outro modo de celebrá-la senão exigindo sua aplicação e  aperfeiçoamento: o cessar da ocupação do Iraque, a independência de Porto Rico, o fim do bloqueio a Cuba, a redução da emissão de gás carbônico, a paralisação do desmatamento da Amazônia, a salvação da África. Acresçam-se à Declaração os direitos internacionais, planetários, ambientais.

No Brasil, é hora de a Declaração ser transferida do papel à realidade social. Em que pese a atuação corajosa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, impossível celebrar conquistas em direitos humanos enquanto a polícia estigmatiza como suposto traficante o morador de favela; o Judiciário promove a orgia compulsória ao trancafiar mulheres em celas repletas de homens; indígenas e quilombolas são condenados à miséria por descaso das autoridades; a frouxidão da lei cobre de imunidade corruptos e de impunidade bandidos e assassinos.

Não basta o propósito sincero de fazer novo em nossas vidas o ano de 2008. É preciso mais: fazer novas as realidades que nos cercam, de modo que ocorram mudanças afetivas, e a paz floresça como fruto da justiça.

Feliz 2008, Brasil!

 

 

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

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Comentários   

0 #3 Feliz 2008Porpino 04-01-2008 10:57
Parabens pelo artigo, nunca li nada tão significativo sobre o ano novo.
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0 #2 feliz 2008sergio maciel bertoldi 03-01-2008 16:35
gOSTO MUITO DO TÊXTO DO fREI bETO, É OBJETIVO NOS DÁ UMA SENSAÇÂO DE FALAR O QUE EU GOSTSRIA DE DIZER.
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0 #1 é preciso crêrInês Prata Girão 03-01-2008 15:44
Pois é, e nós brasileiros católicos ficamos duplamente envergonhados diante da nossa incapacidade de exigir- no Brasil e no Vaticano - posições mais evangélicas por parte da elite dirigente, que ainda diz fazer uma opção preferencial pelos pobres. Infelizmente, sabemos que doutores da lei e autoridades laicas sempre foram arredias às propostas do Cristo.
Só não podemos é desanimar. Façamos da fraqueza força, como diz sabiamente o povo e da vergonha uma indignação propositiva. Afinal, ainda hoje ele chama mulheres como Madalena e homens como Zaqueu, para a verdadeira conversão e eles passam a dedicar toda a sua vida à construção de um reino de justiça e paz, que começe aqui mesmo, todos os dias e sem uso de violência, no puro serviço, acendendo luzes para que outros entendam que, no Cristo, somos todos iguais. Não é fácil, mas é preciso crê...
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