Feliz 2008
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- Frei Betto
- 03/01/2008
Por que o réveillon provoca tanta fissura? O que há de
especial em se trocar de ano? Nada, exceto a convenção numérica, invenção
indo-arábica, que nos permite codificar o tempo em horas, minutos e segundos, e
estabelecer, segundo o movimento de nosso planeta em torno do sol e as fases da
lua, calendários que repartem o tempo em ano de doze meses, mês com cerca de 30
dias, e dia com exatas 24 horas.
Ocorre que não somos trilobitas, e sim humanos, dotados da capacidade de
imprimir ao tempo caráter histórico e, à história, sentido. O réveillon é,
pois, um rito de passagem. Ressoa em nosso inconsciente o alívio por terminar
um ano de tantos revezes, perdas, sofrimentos; e celebrar conquistas, avanços e
vitórias. Há que soltar fogos, inundar cálices, expressar bons propósitos às
divindades que povoam nossas crenças, vestir-se de branco como sinal de nossa
primeira comunhão com o novo ano que se inicia.
Vivemos premidos pelo mistério. Como as partículas subatômicas, somos regidos
pelo princípio da indeterminação. Essa impossibilidade de prever o futuro
suscita angústia, o que nos induz a tentar decifrá-lo por via da leitura dos
astros e das cartas, da sabedoria de videntes, dos búzios dos pais e mães de
santo, da rogação aos nossos santos protetores.
Esta uma paradoxal característica da pós-modernidade: em plena era da
emergência da física quântica e da falência do determinismo histórico como
ideologia, acreditamos que o nosso futuro está escrito nas estrelas. Daí a
inércia, a indignação imobilizadora, a impotência frente aos escândalos éticos
e ao descaramento com que corruptos são absolvidos por seus pares, essa
letargia que em nada lembra o que se deveria comemorar neste ano: os 40 anos de
Maio de 1968.
Nos países industrializados, Maio de 68 é o paradigma da rebeldia, o grito
parado no ar enfim sonorizado nas manifestações estudantis, os EUA derrotados
pelos vietnamitas, os Beatles reinventando a canção, a moda subvertendo
parâmetros, as mulheres a conquistar o direito de se apaixonarem pela primeira
vez inúmeras vezes, a castração do machismo, a emergência esotérica.
Do lado sul do planeta, os anos de chumbo, os generais metendo no coldre as
chaves dos parlamentos, a utopia dependurada no pau-de-arara, as rotas do
exílio a se multiplicarem, os mortos e desaparecidos enterrados nos arquivos
secretos das Forças Armadas. Ainda assim, havia sonho, e não era motivado pela
ingestão química, brotava da fome de liberdade e justiça, fomentava o desejo
irrefreável a adjetivar de novo a criatividade incensurável - o cinema, a
bossa, a literatura, o tropicalismo.
No passado, o futuro era melhor. Hoje, imersos nessa sociedade da
hiperestetização da banalidade, na qual as imagens contraem o tempo e a WEB
virtualiza o diálogo na solidão digital, andamos em busca de uma razão de
viver. Perdemos o senso histórico, trocamos os vínculos de solidariedade pela
conectividade eletrônica, vendemos a liberdade por um punhado de lentilhas em
forma de segurança.
Em 2008, seremos chamados às urnas municipais. Haveremos de tentar discernir os
idealistas dos arrivistas; os servidores públicos dos que se afogam no ego
destilado na embriaguez dos aplausos; os movidos pela intransigência dos
princípios éticos dos que miram os recursos do Estado como carniça fresca
ofertada à sua gula insaciável.
Ano de comemorar os 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos - que, para vergonha de nós, católicos, até hoje não mereceu a
assinatura do Estado do Vaticano.
Neste mundo de atrocidades, não há outro modo de celebrá-la senão exigindo sua
aplicação e aperfeiçoamento: o cessar da ocupação do Iraque, a
independência de Porto Rico, o fim do bloqueio a Cuba, a redução da emissão de
gás carbônico, a paralisação do desmatamento da Amazônia, a salvação da África.
Acresçam-se à Declaração os direitos internacionais, planetários, ambientais.
No Brasil, é hora de a Declaração ser transferida do papel à realidade social.
Em que pese a atuação corajosa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, impossível celebrar conquistas em direitos humanos
enquanto a polícia estigmatiza como suposto traficante o morador de favela; o
Judiciário promove a orgia compulsória ao trancafiar mulheres em celas repletas
de homens; indígenas e quilombolas são condenados à miséria por descaso das
autoridades; a frouxidão da lei cobre de imunidade corruptos e de impunidade
bandidos e assassinos.
Não basta o propósito sincero de fazer novo em nossas vidas o ano de 2008. É
preciso mais: fazer novas as realidades que nos cercam, de modo que ocorram
mudanças afetivas, e a paz floresça como fruto da justiça.
Feliz 2008, Brasil!
Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.
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Comentários
Só não podemos é desanimar. Façamos da fraqueza força, como diz sabiamente o povo e da vergonha uma indignação propositiva. Afinal, ainda hoje ele chama mulheres como Madalena e homens como Zaqueu, para a verdadeira conversão e eles passam a dedicar toda a sua vida à construção de um reino de justiça e paz, que começe aqui mesmo, todos os dias e sem uso de violência, no puro serviço, acendendo luzes para que outros entendam que, no Cristo, somos todos iguais. Não é fácil, mas é preciso crê...
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