Correio da Cidadania

Estado confessional

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Tudo indica que teremos pela frente um Estado confessional, disposto a negar o princípio constitucional da laicidade. Algo parecido ao Destino Manifesto defendido pelos ultraconservadores dos EUA e governos que preferem se ater a Livros Sagrados do que a Constituições.

“O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Este brado da Brigada de Paraquedistas do Exército foi o mote de campanha do futuro presidente. Mas, que deus? O que levou a Inquisição a acender fogueiras a supostos hereges? O invocado pelo cardeal Spellman, de Nova York, ao abençoar soldados que foram perder a guerra no Vietnã?

O Deus de Jesus ou dos escribas e fariseus que o levaram à cruz? O da fé de Hitler ou de Luther King, que deu a vida pelo fim da discriminação racial?

Tão logo soube de sua vitória eleitoral, Bolsonaro declarou: “Afinal de contas, a nossa bandeira, o nosso slogan, eu fui buscar naquilo que muitos chamam de caixa de ferramenta para consertar o homem e a mulher, que é a Bíblia Sagrada. Fomos em João, 8:32: “E conhecereis a verdade. E a verdade vos libertará”.

Qual verdade? A pós-verdade? A Bíblia contém, sim, valores e propostas de como homens e mulheres poderiam ser melhores. E todos contrariam o discurso do futuro presidente, pois não admitem preconceitos, ofensas, torturas e nada que atente contra o que há de mais sagrado para Deus – a vida do ser humano.

“Quem é da verdade escuta a minha voz”, disse Jesus a Pilatos (João 18,37). O governador romano retrucou: “O que é a verdade?” (38). E ficou sem resposta. Não porque Jesus preferisse não responder-lhe. Mas porque Pilatos não tinha ouvidos para ouvir nem olhos para ver que a verdade era a prática libertadora de Jesus. Não valia a pena, na expressão do próprio Nazareno, “atirar pérolas aos porcos” (Mateus 7,6).

No Brasil, o futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, professa a fé de que a missão de Trump é resgatar a civilização ocidental, sua fé cristã e as tradições forjadas “pela cruz e pela espada”. Os indígenas que o digam... E faz uma salada semântica ao afirmar que o “globalismo” é “essencialmente um sistema anti-humano e anticristão. A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história”.

Curioso é constatar que a globalização é uma invenção cristã. Até a era cristã as religiões estavam confinadas a etnias. Não tinham como objetivo angariar adeptos de outras culturas. Foi o Nazareno que enviou os discípulos a anunciá-lo “a todos os povos”, missão da qual o apóstolo Paulo se destacou como pioneiro exemplar.

Fracassaram os profetas do fim da religião e da morte de Deus, como Marx e Freud. Ela está mais viva do que nunca, e em certos países, como nos EUA, é no mínimo politicamente incorreto professar o ateísmo.

A diferença é que, agora, a religião saiu dos trilhos das etnias. Já não depende de um poder centralizado como o Vaticano. O islamismo ultrapassa as fronteiras do mundo árabe e conquista multidões de fiéis na África. As tradições religiosas da Índia atraem adeptos em todo o Ocidente. E o nome de Deus é invocado em vão por democratas e tiranos. As notas de reais estampam “Deus seja louvado”, como nas de dólares consta In God we Trust (“Em Deus nós confiamos”).

Se o Brasil adotar o modelo do Estado Leviatã de Hobbes e retroceder ao século 19, possivelmente teremos, nas escolas, a volta da concepção criacionista para explicar as origens do Universo e da humanidade, e o descarte sumário de Darwin e do evolucionismo. E, na falta de médicos que atendam às populações mais pobres, bastaria ensinar a suplicar a Deus pela cura de todas as doenças. Os recursos públicos seriam poupados e, caso não ocorra o milagre, com certeza o Céu será o prêmio eterno de consolação aos desvalidos.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Frei Betto

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

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