Deus é brasileiro?
- Detalhes
- Frei Betto
- 29/01/2008
A história do Brasil, vista pela ótica do governo, pode ser caracterizada pela alternância entre momentos de euforia e desalento. Assim ocorreu durante a ditadura militar, quando o “Pra frente, Brasil” enchia de ufanismo os arautos dos maquiados índices econômicos delfinianos e vangloriavam-se de obras como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, enquanto nos porões do regime borrifavam-se as paredes com sangue dos torturados e assassinados.
Todos os governos pós-ditadura – Sarney, Collor, Itamar e FHC – exaltaram seus “milagres” econômicos, impondo à nação planos mirabolantes que jamais reduziram a miséria, promoveram a distribuição de renda e preservaram a soberania nacional.
Lula evita tratamento de choque na economia, mas multiplica a riqueza do andar de cima, asfixia a classe média com o peso de impostos exorbitantes e faz de conta que ameniza a miséria dos beneficiários do Bolsa Família, incapazes de se emancipar da mesada oficial e produzir a própria renda.
Nossos governos não têm estratégias, têm programas de euforia cíclica para mero efeito eleitoral. Não miram a história, olham o próximo pleito. No atual, a euforia cíclica começou com o Fome Zero, passou para a Campanha Nacional de Alfabetização, alardeou o lançamento do PAC, proclamou o fim da crise de energia, comemorou a auto-suficiência em petróleo (e nem por isso reduziu o preço da gasolina) e, agora, aclama Deus como brasileiro pela descoberta de inesgotável manancial de petróleo na bacia de Santos.
Será mesmo que Deus é brasileiro? Quanto às nossas condições ambientais, estou convencido de que Ele, ainda que não seja brasileiro, sem dúvida privilegiou o nosso país: temos dimensões continentais e nenhuma catástrofe natural, como terremoto, furacão, ciclone, tornado, tufão, vulcão, deserto, geleira. A Amazônia ocupa 2/3 de nosso país e conserva 12% da água potável disponível no planeta, sem contar o vasto potencial do Aqüífero Guarani, ainda inexplorado no centro-sul do país. Produzimos todo tipo de alimentos e temos uma área cultivável de 600 milhões de hectares.
Se o Brasil não é o Jardim do Éden a culpa não é de Deus, é dos políticos que elegemos e de nossa inércia diante do estrago que produzem, atuando em favor, não do povo, mas de seus interesses corporativos. Nossa abundante riqueza é injustamente distribuída. Saúde aqui é privilégio de quem dispõe de plano privado; a educação pública está sucateada; jamais conhecemos a reforma agrária; nossas cidades estufam-se de favelas; a desigualdade social é gritante; a violência urbana provoca mais vítimas por ano que a guerra dos EUA ao Iraque.
Deus não pode ser culpado por nada disso. A culpa é de governos que prometem mudanças e, uma vez empossados, deixam tudo como dantes no quartel de Abrantes, restritos a políticas públicas eleitoreiras, incapazes de atacar as causas que promovem tamanhos desníveis sociais. Mudam-se governos, perenizam-se as estruturas injustas.
Deus não tem nacionalidade nem religião, mas tem rosto. Está no capítulo 25 do evangelho de Mateus, versículos 31 a 46: “tive fome e vocês me deram de comer etc.”. Quem vê o faminto, o desamparado, o enfermo, o migrante, enfim, o excluído, vê Deus. É neles que Deus quer ser visto, servido e cultuado.
Nesse sentido, Deus pode ser visto e servido em qualquer lugar do Brasil, pois toda parte está repleta de gente com fome, desamparada, enferma etc. Deus não é brasileiro, mas esse contingente enorme de excluídos – cerca de 12 milhões de pessoas – é a mais singular imagem e semelhança de Deus, e neles Ele quer ser amado.
Resta saber se estamos dispostos a reconhecer a presença de Deus, não apenas nos benefícios naturais, como poços de petróleo, mas sobretudo na face daqueles que, neste país, não escolheram nascer e viver como miseráveis e pobres, desprovidos de condições mínimas de acesso aos bens que asseguram ao ser humano dignidade e felicidade. Na loteria biológica, eles tiveram o azar de engrossar os 2/3 da humanidade que, segundo a ONU, vivem abaixo da linha da pobreza ou, em termos financeiros, com renda mensal inferior a US$ 60.
Se nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu, a loteria biológica é injusta e pesa sobre os premiados uma dívida social. Resta-nos assumi-la para que Deus seja de fato brasileiro: quando todos, enfim, tiverem direito ao “pão nosso” e, assim, proclamarem sem mentira que ele é “Pai/Mãe nosso”.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
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Comentários
O setor produtivo gasta 40 por cento em impostos para sustentar
o Estado. A continuar neste ritmo, em breve estará em setenta! Aí a vaca vai pro brejo
de novo. A proposito, como seriam
tratados os capitalistas se Frei
Betto e o grupo dos Onze (1962) tivessem implantado o comunismo no Brasil?
Abraços. Cyro
Entretanto, temos que considerar a própria vida de Frei Betto. Poucos foram como ele submetidos à tortura e defende(ra)m vida digna para as pessoas, mais que "as migalhas que caem da mesa do Pai".
Penso que todos têm parte de razão, mas Frei Betto fala de algo (da pobreza) estrutural.
Também a partir de minha própria história de trabalhador em uma Universidade Pública brasileira, militante na área de educação (inclusive Pré´s Comunitários)e parte dessa pobreza de que fala o artigo, entendo que Frei Betto está chamando a atenção sobre o que está em jogo solapando o essencial da vida humana, ou como ele mesmo diz: "Nossa abundante riqueza é injustamente distribuída. Saúde aqui é privilégio de quem dispõe de plano privado; a educação pública está sucateada; (...)Lula (...)multiplica a riqueza do andar de cima". Não quero me estender, mas é aqui que reside a possibilidade de "Mudança" ou apenas a maquiagem de sempre para manter tudo mais ou menos como dantes.
O capitalismo foi levado a "incluir" a pobreza e "docilizá-la", para mantê-la exatamente onde está.
De fato, podemos, a partir do que todos nós fazemos, trabalhar por uma mudança social efetiva ou sermos envolvidos neste "diabólico", mas eficiente plano de manutenção da reiqueza de cada vez menos em detrimento da exclusão da maioria.
Grande abraço a tod@s.
O fato de nós (eu na condição de universitário) pertencermos a uma elite "cultural" deriva muito da nossa premiação na "loteria biológica".
Portanto, Frei Betto, gostaria que nos próximos artigos vc comentasse minha humilde opinião...
Frei, acho que não poderiamos penalizar grosseiramente a Bolsa Família, uma vez que é um programa paliativo necessário para minimizar os efeitos deletérios do presente.. Esse programa, ainda que deficitário, conseguiu tirar várias pessoas da miséria e dar pelo menos um possível horizonte de expectativa de um futuro melhor...
Evidentemente, um governo não pode só remediar ou atuar nas consequências do presente, é necessário junto com o Bolsa Família (medida conjuntural), pavimentar o caminho de uma medida estrutural, entretanto essa medida estrutural (investimento maciço em educação, empregos, infra-estrutura) demanda tempo, são para as gerações futuras...
Por isso eu afirmo que o Bolsa Família é um remédio necessário, porque tem uma responsabilidade com a geração presente no sentido de minimizar a dor gritante da falta de necessidades básicas, fisiológicas. Quem não tinha o que comer, teria capacidade orgânica para fazer outra coisa, como procurar emprego, estudar e etc? É muito fácil para a elite neoliberal ficar penalizando os pobres dependentes do Bolsa Família adjetivando-os de "acomodados", "preguiçosos", "parasitas", e dizendo que o Estado Brasileiro virou um "Estado Babá"...
E mesmo que uma pessoa se emancipe da condição de dependente do Bolsa Família, ele ira encontrar um trabalho, na maioria das vezes, completamente precarizado e explorador. O corpo do trabalhador é o centro nevrálgico do poder e se insere no conceito folcaultiano de biopoder, ou seja, corpos completamente docilizados e sem nenhuma noção da dimensão de sua exploração.
Assim, percebe-se que é muito fácil fazer esse discurso penalizador e acusador contra os pobres partindo de um parâmetro alimentado a vida toda por "leite ninho". Como diria a socióloga carioca Vera Malaguti: "A guerra contra a pobreza foi substituída pela guerra contra os pobres". Nesses momentos, falta muita capacidade empática dessa elite (que influencia cada vez mais a sociedade civil passando esta a internalizar esses pré-conceitos) se colocar no lugar dos "outros pobres" e ver o "outro" como o "outro" e não como espelho de si mesmo. É necessário, fundamentalmente, uma Ética da Alteridade nos termos de Hanna Arendt, para exatamente cumprir nossa dívida social já que fomos agraciados e premiados com a tão sonhada "loteria biológica" nas palavras do querido e admirável Frei Betto...
Um grande abraço e espero retorno...
P.S: não sou petista, nem filiado a partido nenhum, mas um mero estudante de Direito de São Luís do Maranhão...
Portanto, Frei Betto, gostaria que nos próximos artigos vc comentasse minha humilde opinião...
Frei, acho que não poderiamos penalizar grosseiramente a Bolsa Família, uma vez que é um programa paliativo necessário para minimizar os efeitos deletérios do presente.. Esse programa, ainda que deficitário, conseguiu tirar várias pessoas da miséria e dar pelo menos um possível horizonte de expectativa de um futuro melhor... Evidentemente, um governo não pode só remediar ou atuar nas consequências do presente, é necessário junto com o Bolsa Família (medida conjuntural), pavimentar o caminho de uma medida estrutural, entretanto essa medida estrutural (investimento maciço em educação, empregos, infra-estrutura) demanda tempo, são para as gerações futuras... Por isso eu afirmo que o Bolsa Família é um remédio necessário, porque tem uma responsabilidade com a geração presente no sentido de minimizar a dor gritante da falta de necessidades básicas, fisiológicas. Quem não tinha o que comer, teria capacidade orgânica para fazer outra coisa, como procurar emprego, estudar e etc? É muito fácil para a elite neoliberal ficar penalizando os pobres dependentes do Bolsa Família adjetivando-os de "acomodados", "preguiçosos", "parasitas", e dizendo que o Estado Brasileiro virou um "Estado Babá"... E mesmo que uma pessoa se emancipe da condição de dependente do Bolsa Família, ele ira encontrar um trabalho, na maioria das vezes, completamente precarizado e explorador. O corpo do trabalhador é o centro nevrálgico do poder e se insere no conceito folcaultiano de biopoder, ou seja, corpos completamente docilizados e sem nenhuma noção da dimensão de sua exploração. Assim, percebe-se que é muito fácil fazer esse discurso penalizador e acusador contra os pobres partindo de um parâmetro alimentado a vida toda por "leite ninho". Como diria a socióloga carioca Vera Malaguti: "A guerra contra a pobreza foi substituída pela guerra contra os pobres". Nesses momentos, falta muita capacidade empática dessa elite (que influencia cada vez mais a sociedade civil passando esta a internalizar esses pré-conceitos) se colocar no lugar dos "outros pobres" e ver o "outro" como o "outro" e não como espelho de si mesmo. É necessário, fundamentalmente, uma Ética da Alteridade nos termos de Hanna Arendt, para exatamente cumprir nossa dívida social já que fomos agraciados e premiados com a tão sonhada "loteria biológica" nas palavras do querido e admirável Frei Betto...
Um grande abraço e espero retorno...
P.S: não sou petista, nem filiado a partido nenhum, mas um mero estudante de Direito de São Luís do Maranhão...
não é capaz revolucionar por completo a vida de ninguem, mas o povo brasileiro vê e escuta criticas contra os programas assistencialistas do governo e nao sabe muitas vezes do lado bom. Muitos latifundiarios estao revoltados, pois empregados(senao escravos) que obtiveram o bolsa-familia se recusam agora a continuar trabalhando 12 horas por dia a troco de alguns poucos reais diários.
É preciso DE MUDANÇAS...ISSO TODOS SABEM...MAS AO SE TRATAR DO POVO BRASILEIRO É PRECISO TER CUIDADO COM NOSSAS POSIÇÕES, POIS É UM POVO MUITAS VEZES DESINTERESSADO, IMEDIATISTA E INJUSTO.
GOSTEI MTO DO ARTIGO DO Frei Betto, mas realmente fico preocupada com as pessoas e a forma que elas interpretam nossas posições.
Sugiro letura de importante estudo sobre estas estratégias no livro "Nova Pedagogia da Hegemonia"
Grande abraço,
Claudio
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