Somos todos pós-verdade?
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- Frei Betto
- 01/08/2019
A resposta é sim, se comungamos essa angústia, esse sentimento de frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags; a chinesa, em capitalismo de Estado; e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita?
Quem diria que a especulação superaria a produção, e o valor intrínseco de um ser humano se deslocaria para os bens que possui (e seu valor não é reconhecido se não possui bens)? Quem diria que tantas pessoas haveriam de erigir o mercado como um deus ao qual prestam culto, e cuja mão invisível seria capaz de regular o progresso das nações sob a égide da economia?
Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilização da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da informatização, da robótica, a googletização da cultura, a celularização das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras.
Na pós-verdade, o sistemático cede lugar ao displicente; o articulado ao disforme; a teoria à conjectura. A razão delira e fantasiada de cínica baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Como proclamou Nietzsche, já “não há fatos, apenas versões”.
Nesse mar revolto, muitos se apegam às “irracionalidades” do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia servil à Casa Branca, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas.
Já não se buscam grandes narrativas, paradigmas históricos, valores universais. Agora sopra o vento da “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie, e muitos se ajoelham aos avatares, convencidos de que a lei da força deve predominar sobre a força da lei.
Para a pós-verdade, a história findou, e resta nos adequarmos ao tempo cíclico. O lazer, agora, se reduz a mero hedonismo, e a filosofia, a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade, as luzes da ribalta, o invencível Homem de Ferro. Já não importa a distinção entre urgente e prioritário, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e duradouro.
A estética se faz esteticismo. E o que vale é o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. Tendemos a ficar reféns da exteriorização e dos estereótipos.
Para a pós-verdade, já não cabe o pensamento crítico, e ela abraça a razão cínica como Diógenes a sua lanterna. Prefere, nesse mundo conflitivo, ser espectadora e não protagonista, observadora e não participante, público e não ator.
A pós-verdade duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxa. Por isso, não crê em algo ou em alguém. Como a serpente Uroboros, morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesma, indiferente à dimensão social da existência.
A pós-verdade tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo.
O discurso pós-verdade é labiríntico, descarta paradigmas, e sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar artistas, autores clássicos e arrivistas que alcançaram 15 minutos de fama.
A pós-verdade não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Sua visão de mundo é uma colcha de retalhos eivada de subjetivismo.
A ética da pós-verdade detesta princípios universais. É a ética de ocasião e conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação.
A pós-verdade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde as sombras têm mais importância que o nosso ser, e as nossas imagens predominam sobre a existência real.
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")