A fantasia se faz realidade
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- Frei Betto
- 18/02/2020
O Carnaval é uma festa litúrgica, momento de transgressão da racionalidade e de efusão do espírito. Sua essência é imprimir realidade à fantasia, por mais paradoxal que pareça. No Carnaval o folião se desafoga, livra-se dos anjos e demônios que o habitam, migra para as múltiplas representações de sua personalidade condicionada, no resto do ano, pelos padrões culturais hegemônicos.
Nessa festa o folião exibe o seu avesso e desmascara convenções sociais, quebra preconceitos e ridiculariza a empáfia dos que detêm o poder. É a ocasião de extravasar sentimentos e emoções reprimidos, trazer à tona a intimidade contida, inclusive se entrelaçar com estranhos que se tornam próximos pelo simples fato de endossarem o cordão, o bloco, a escola de samba.
O ser humano não suporta ficar confinado na esfera da necessidade e cuidar apenas da administração da vida como fenômeno biológico: o trabalho em busca de salário; o aluguel; a mensalidade da escola dos filhos; as contas de luz e gás... É preciso emergir eventualmente para a esfera da gratuidade, na qual predominam o lúdico, o festivo, o litúrgico, território no qual a imaginação ou a fantasia assume supremacia sobre a razão e a moral se impõe sobre o moralismo.
O que se busca no Carnaval? O espelho invertido, trafegar na contramão e deixar Momo se refestelar na alegria. Fazer com que os monstros que protagonizam dias e meses do ano permaneçam calados, recolhidos à sua insana tristeza. Aflorar o júbilo dessa gente sofrida e devolver-lhe a autoestima. Ainda que dure apenas três ou quatro dias, sejam dados vivas e aplausos à faxineira travestida de rainha; ao encanador, de sultão; ao gari, de oráculo divino.
Festa com gosto de infinitude, tenha o Carnaval um ritmo tão alucinado que faça todos rodopiarem no carrossel da alegria embriagadora. Soem cuícas, tamborins e pandeiros, e exorcizem, de todos os foliões, essa letargia que o medo infunde naqueles que não acreditam que o presente se fará ausência no futuro promissor. Abram alas às alvíssaras!
Vamos, neste Carnaval, arrancar as roupagens convencionais que nos impelem a ser o que não somos. Desfilar despidos de qualquer sinecura, sem os adornos que, ao longo do ano, nos inserem no bloco dos cínicos.
Animados pelo samba-enredo, avancemos rumo à alucinação dos loucos repletos de razão, à subversão poética da palavra desassossegada, à lógica que supera os efeitos e ousa encarar as causas até elevá-las ao cume dos carros alegóricos.
Não tergiversar nem fazer coro com os que insistem em acobertar o passado. No sambódromo, o ritmo da bateria haverá de ressuscitar todas as crianças assassinadas pelos monoglotas do discurso bélico: Ketellen, Ágatha, Kauê, Kauã, Kauan e Jenifer.
A comissão de frente ostentará imensa faixa com o verbo AMAR, para que todos os foliões desaprendam a conjugar o verbo armar, pois um simples erre é capaz de desencadear, como pandemia, sementes amargas de rancor, raiva e ruindade.
Vamos celebrar, neste Carnaval, a união de espíritos, a tolerância de convicções, o diálogo das religiões, e exaltar o direito à diferença, execrando os que insistem em desenterrar torturadores e nazistas para convidá-los à dança macabra da necrofilia ao som de tiros.
Venha um Carnaval que celebre o Brasil e os brasileiros, essa gente sofrida que, o ano todo, percorre a espinhosa passarela da vida sonegada de direitos, condenada à pobretarização, à educação sucateada, à saúde enferma, ao saneamento restrito e ao emprego loteria.
Desfilem todos ébrios de utopia e entranhados da convicção de que fantasias podem se fazer realidade, e a imaginação, poder. E ousem romper o cordão que teima em contê-los imolados na sacrílega noção de que o sofrimento merece ser naturalizado.
A vida nos foi dada para desfilar soberba na cadência da letra efe – bastam-nos, como brasileiros, fé, futebol, feijão, farinha e o fogo inapagável dos direitos de cidadania. O suficiente para nos assegurar festa e fartura.
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")