Entre o Jesus histórico e o teológico
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- Frei Betto
- 22/08/2020
Em seu clássico Jesus, publicado no início do século 20, Rudolf Bultmann admitiu que "agora já não podemos conhecer qualquer coisa sobre a vida e a personalidade de Jesus, uma vez que as primitivas fontes cristãs não demonstram interesse por qualquer das duas coisas, sendo, além disso, fragmentárias e, muitas vezes, lendárias; e não existem outras fontes sobre Jesus".
A autoridade intelectual de Bultmann pôs uma pedra sobre esse veio de pesquisa. Interessar-se pelo Jesus histórico era perda de tempo. Porém, em 1953, Ernst Käsemann quebrou o tabu na trilha do método de estudo bíblico de Orígenes que, no século 3, considerava-se um caçador que andava silenciosamente pela floresta até pressentir alguma coisa se movendo. Então, partia em sua perseguição.
A vantagem de Käsemann e de todos que se debruçaram sobre o Jesus histórico na segunda metade do século 20 é que, agora, muitas coisas se moviam e traziam luz onde antes havia trevas. Em 1947, três beduínos pastoreavam seus rebanhos a oeste do Mar Morto. Um deles viu dois buracos na encosta de um penhasco e atirou uma pedra no menor. Escutaram um som, como se a pedra tivesse batido em jarras de barro. Dias depois, o mais jovem escalou sozinho o penhasco e enfiou-se pela caverna. Nas jarras não havia nenhum tesouro. Mas uma delas continha dois embrulhos de pano e um rolo de couro.
Os beduínos guardaram o achado em um saco e o amarraram, por várias semanas, no pau de uma tenda próxima a Belém. Depois, passaram os embrulhos a um receptador de Belém, o sapateiro Kando que, sem saber o valor do que tinha em mãos, mostrou-os a pessoas que se interessavam por antiguidades. Os dois embrulhos de pano e o rolo de couro eram os primeiros Manuscritos do Mar Morto a serem descobertos. Logo, outros documentos foram encontrados em diversas cavernas.
James H. Charlesworth rejeita o método da dissimilaridade ou princípio de descontinuidade, que procura destacar Jesus como figura singular, como um peixe fora das águas judaicas de seu tempo. Para o autor, "Jesus de Nazaré, como homem histórico, tem que ser visto dentro do judaísmo" (p. 10, grifo do autor). Embora se interessasse, como cristão, pelas questões teológicas referentes a Jesus, ele se detém, naquela obra, nos limites da historiografia. Os documentos que analisa permitem conhecer melhor o contexto em que Jesus viveu e, portanto, o significado de algumas de suas palavras e ações.
Jesus era muito mais judeu do que supomos - é o que o livro, baseado em farta e erudita documentação, demonstra em linguagem acessível aos leitores em geral. Não se trata de enfocar Jesus e o judaísmo, mas Jesus no judaísmo.
O autor argumenta que já dispomos de recursos científicos suficientes para ter alguma ideia da compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Comprova, por exemplo, que o título "Filho do Homem", frequente na boca de Jesus, não é uma criação cristã, já que é encontrado em documentos judaicos anteriores à destruição de Jerusalém pelos romanos, entre os anos 66 e 70. Todos os evangelhos são posteriores àquela data. Numa exegese detalhada da intrigante Parábola dos Vinhateiros Homicidas (Marcos 12, 1-12), não reluta em defender que Jesus se sentia adotado como filho por Deus.
Charlesworth não pesquisa Jesus para mostrá-lo "como um herói do passado a ser admirado" (p. 31), mas para destacar a veracidade de certos fatos da vida dele, como a escolha dos discípulos em um contexto em que o habitual era os alunos escolherem o mestre. Enquanto seus contemporâneos cultuavam um Deus distante, Jesus tratava Deus como um Pai muito íntimo, repleto de compaixão e amor, especialmente para com os pobres e pecadores. Isso destoava dos judeus da época, que clamavam por vingança divina e exigiam a punição dos maus.
Tendo convivido com grupos essênios - pois 4 mil deles espalhavam-se pela Palestina -, deles Jesus teria herdado o celibato "por amor ao Reino" (Mateus 19, 10-12). Criticava, porém, suas purificações formalistas que os impedia de amar o próximo e reconhecer que no coração de uma prostituta pode haver mais pureza do que em todas as abluções rituais. E com eles tinha em comum, além do tempo e do lugar (Palestina), as mesmas antigas tradições hebraicas, como a leitura de Isaías e a reza dos Salmos.
A conclusão do autor aplaca o receio dos que temem a verdade histórica: "o fato de se examinarem documentos contemporâneos de Jesus e de se estudar arqueologia, no entanto, nunca deve ser encarado como uma tentativa de provar ou dar suporte a qualquer fé ou teologia. Uma fé autêntica não precisa disso. Filólogos, historiadores e arqueólogos não podem dar aos cristãos um Senhor ressuscitado, mas podem ajudar a compreender melhor a vida, o pensamento e a morte de Jesus" (p. 142).
O curioso é que, dos documentos analisados no livro, os três mais importantes - Pseudo-epígrafos, Manuscritos e Nag Hammadi - não foram descobertos por arqueólogos ou pesquisadores, mas por gente simples do povo. Hoje, nas Comunidades Eclesiais de Base da América Latina, é essa mesma gente simples que relê a Bíblia e, graças à assessoria científica de exegetas como Carlos Mesters, descobre que o Jesus da fé, o Cristo, se faz de novo presente na história através dos que oram "Pai Nosso" porque, juntos, buscam o "pão nosso".
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")