Correio da Cidadania

Tempo de tiranias

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Foto: Manifestação contra o governo Bolsonaro na esplanada dos ministérios, em Brasília. Créditos: Leopoldo Silva / Agência Senado – Senado federal do Brasil.

A história da humanidade é marcada por tiranias. E por ousados homens e mulheres que lideraram a resistência a elas, de Judite, que decapitou o general assírio Holofernes, como descreve a Bíblia, a Rosa Parks, pioneira no desafio ao racismo estadunidense; de Jesus a Nelson Mandela, de Spartacus a Fidel Castro.

O capitalismo sempre conviveu muito bem com tiranias. Inclusive tratou de implantá-las em vários países, através de golpes de Estado e assassinatos de políticos progressistas, como Salvador Allende no Chile. A própria estrutura do sistema é tirânica: o poder político é virtualmente democrático, mediante eleições periódicas, mas o poder econômico, que tudo comanda, persiste concentrado em mãos de poucos que, por sua vez, monitoram o poder político.

É pura falácia celebrar, como democrático, um país cujas leis defendem e protegem a concentração da riqueza em mãos de uma elite, enquanto a maioria da população carece de bens essenciais à vida digna, e a pobreza e a miséria se alastram a olhos vistos.

No livro “O regime dos príncipes”, do século 13, Tomás de Aquino escreveu: “Se o que espolia um homem ou o escraviza ou mata é merecedor da pena máxima, que é a pena de morte no juízo dos homens, e a condenação eterna de Deus, que maior motivo se há de considerar para o tirano merecer os piores castigos, posto que ele, a todos e em toda parte, atenta contra a liberdade de todos e mata quando tem vontade! Inflados de soberba, afastados das mãos de Deus por seus pecados e iludidos por seus aduladores, raras vezes se arrependem, e ainda mais raramente pensam em reparar os danos” (Livro 1, cap. 11).

O frade dominicano advertiu: “O domínio dos tiranos não pode ser duradouro, porque é odioso para o povo. Não pode manter-se muito tempo (...) E, chegado o tempo (...) para levantar-se contra o tirano (...) o povo apoiará o insurgente e não ficará sem vitória o que luta com apoio do povo” (Livro 1, cap. 10).

No século 15, o teólogo franciscano Jean Petit, ao defender o Duque de Borgonha, João Sem Medo – que assassinara o tirano Duque de Orléans – se apoiou em Santo Tomás para provar a licitude do tiranicídio. O Concílio de Constanza (1414-1418) se negou a condenar o direito ao tiranicídio. Para Tomás de Aquino, a essência da tirania é o exercício do poder em proveito de quem governa e em detrimento dos direitos do povo.

Séculos depois, o papa Paulo VI, na encíclica “Populorum progressio” (1967), admitiu o emprego da violência contra uma tirania prolongada e evidente, que atenta gravemente contra os direitos fundamentais da pessoa, e provoca graves danos ao bem comum (n. 37).

Tomás de Aquino, na “Suma teológica” (questão 42), reconhece a licitude da revolução, mas não admite o princípio de que os fins justificam os meios. Ações terroristas carecem de base ética. Se a vitória da revolução trouxer ao povo mais sofrimento que a tirania, então a revolução é ilícita. Qualquer mudança que signifique a substituição de uma tirania por outra deve ser descartada.

O princípio da não violência se impõe. Mas não de modo absoluto. Aqueles que defendem os direitos ao povo devem insistir na luta por meios pacíficos e democráticos. No entanto, quando os tiranos e seus cúmplices suprimem todas as vias democráticas e reprimem duramente seus opositores, não resta alternativa ética senão o povo se defender, pelas armas, da opressão que sofre. O primeiro tiro é sempre disparado pelos inimigos do povo. Contudo hoje, frente a governos como o do Brasil, a luta armada não se justifica, e só interessa a dois setores: fabricantes e traficantes de armas e defensores da volta à ditadura militar.

Com a atual fragilização da democracia, fortalecida pelo crescente desinteresse das novas gerações pela política e o descrédito dos partidos, governos tirânicos apoiados por neonazistas e milicianos ou paramilitares voltam a ocupar o proscênio em vários países.

É hora de os setores progressistas e de esquerda reaprenderem a se firmar como alternativas confiáveis e, assim, conquistar corações e mentes – voltar ao trabalho de base, adotar a metodologia de educação popular, aprimorar-se no uso das redes digitais e formular projetos de governo que contribuam para organizar e mobilizar a esperança.



Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Frei Betto

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

Frei Betto
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