Correio da Cidadania

Carlito Maia, senhor cidadania

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Foto: Carlito Maia. Reprodução.

Meu querido Carlito, você partiu há 20 anos. Viver não pode ser sinônimo de sofrer, e a sua agonia se prolongou por muito tempo. A última vez que nos vimos foi na terça, 18 de junho de 2002. Você estava muito sereno quando, ao lado de Tereza, dei-lhe a bênção da despedida. Agradecemos ao Pai/Mãe de Amor o dom de sua existência. Agora, no colo de Deus, você ri de suas inquietações quanto aos mistérios que, para nós, se escondem do outro lado da vida.

Lamentamos a sua partida. Com a sua ausência, ficamos órfãos de quem nos ensinou a lutar por cidadania. "Brasil? Fraude explica", bradou você diante de tanta corrupção. Você era a cidadania em carne e osso. O último pré-socrático. Com suas frases curtas e certeiras, proverbiais e irônicas, construiu uma obra literária e contestatária de inestimável valor, inclusive filosófico, com o mérito de proferir axiomas que todos entendem.

Viramos cúmplices desde 1966, quando nos conhecemos no convento dos dominicanos, no bairro de Perdizes, na capital paulista. Convidado por um dos padres, você veio pronunciar palestra sobre TV. Contou como funcionava a sua agência de publicidade, a Magaldi, Prosperi & Maia; como descobriu Roberto Carlos num show de calouros da TV Tupi; como desenhou o perfil da Jovem Guarda, que se tornou, naquela década, o programa da TV Record de maior audiência nacional.

Desde então, não perdemos mais contato, mesmo porque sua irmã Dulce se tornou minha companheira no Teatro Oficina, na resistência à ditadura e no cárcere. E a minha admiração só cresceu, pois você jamais pôs a alma a leilão. Depois de beber tudo a que tinha direito num coquetel de indignações, transformou-se num ébrio de utopias. "Sonho, logo existo", era o seu lema.

Espelhado em Chaplin, seu alter-ego, você combateu o regime militar sem perder o humor e o amor. Virou contrabandista de gente, produtor de fugas, alcoviteiro de guerrilheiros, semeador de esperanças. Acionou sua metralhadora giratória de frases e citações, e fez da ironia uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas.

Poeta do cotidiano, socialista compulsivo, sempre partilhou com amigos e amigas a irreverência de seus textos e recortes de jornais e revistas. Artífice da vida, jamais esqueceu aniversários e homenagens, celebrados por você com a alegria das flores, como quem semeia primavera ainda que reine rigoroso inverno neste país e em nossos corações. E agora, quem nos mandará "beijares e abraçares" em papéis timbrados da Rede Globo, com a sua assinatura acompanhada de uma estrela vermelha?

Quem, como você, soube fazer amigos? Betty Milan retratou esse dom em "O Clarão", sua biografia afetiva. Você, que viveu "livre e solitário como uma árvore, porém solidário como uma floresta", sabia e nos ensinava que "nós não precisamos de muita coisa. Só precisamos uns dos outros."

Mineiro como eu, você nunca foi daqueles que ficam em cima do muro para ver melhor os dois lados. Homem de opções e ações, teve a dignidade embonezada pelo MST, que sempre contou com o corajoso apoio de quem soube enfatizar que "a luta é entre os sem-terra e os sem-vergonha".

Fundador do PT, você cunhou as expressões "Lula-lá" e "Sem medo de ser feliz", e preferia "perder com as bases a vencer sem elas". Desconfiado, sabia que "quando a esquerda começa a contar dinheiro, converte-se em direita".

Sua vida, coerente e bela, foi o brado maior de quem jamais teve medo de algo tão simples e, no entanto, hoje raro: vergonha na cara. Fiel às suas raízes, você sempre nos recordava que "é de pequenino que se torce o destino". Tanta coerência refletia esta sua autodefinição: "Sou o que de mim fiz, porque assim quis."

Louvo a Deus, pleno de gratidão, pela dádiva de sua existência. "A esperança já perdi várias vezes. A fé jamais”, dizia você. Ainda bem, meu querido amigo, tão amado por Deus e por todos nós que, nesta terra de papagaios, sentimos muito a falta de quem não desperdiçava palavras e esbanjava bom humor.

Em um dos bilhetes que me enviou, você transcreveu esta frase de Antonin Artaud: "Parto à procura do impossível. Vamos ver se o encontro." Guardo a certeza de que, aqui nesta Terra, valeu o esforço de quem, em vida, teve a honra de ver o próprio nome batizando o Troféu Cidadania da revista Imprensa. No avesso desta existência sei que, agora, não há mais nada impossível para você. Para sempre, sua vida é terna.

Mais uma vez, a Deus, Carlito.


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Frei Betto

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

Frei Betto
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