Cartões: dinheiro “de ninguém”
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- Frei Betto
- 10/03/2008
"Este dinheiro não é de ninguém. É dinheiro público, da prefeitura", afirmou o empresário André Wertonge Teixeira a Bruno Marzano, assessor da prefeita de Magé (RJ), em gravação registrada pela investigação de fraudes em compras que teriam gerado, em um ano, prejuízo de R$ 100 milhões em seis prefeituras fluminenses.
Essa é a lógica de todos que abusam de recursos públicos. Fingem ignorar que se trata de dinheiro do povo. Bem diz Aristóteles: "O poder desperta a ambição e faz multiplicar a cobiça".
A poderosa máquina do Estado não gera um centavo; capta bilhões através do insaciável apetite do Leão: a multiplicidade de impostos, que agora a reforma tributária promete reduzir, unificar e até isentar... Os ricos, evidentemente.
São vocês, leitor e leitora, que com seu trabalho sustentam os governos e pagam todos os salários, do presidente da República ao faxineiro da cadeia pública, dos juízes ao porteiro da escola municipal. Ora, a idéia de que dinheiro público "não é de ninguém" suscita, em pessoas desprovidas de valores éticos, aquele comichão de quem acha na rua uma nota de cinqüenta reais: o que não é de ninguém, é meu. Assim, o público é apropriado pelo privado e o coletivo pelo indivíduo.
Por que existem cartões de crédito e débito? Porque incentivam o consumo e evitam que se leve dinheiro no bolso nesses tempos em que amigos do alheio andam à espreita. De posse do cartão, perde-se um pouco a dimensão dos gastos. Basta passar a moeda de plástico numa maquininha e... Pronto! O produto está adquirido e a conta paga.
Se essa síndrome do consumismo é estimulada pelas operadoras de cartões, que por isso cobram juros exorbitantes, o que dizer do funcionário público que lida com dinheiro que não é seu? Se não discerne entre o suficiente e o bastante, cai facilmente em tentação. Poupa o seu dinheiro e vai à farra e à forra com o "dinheiro de ninguém".
É claro que, entre os 11 mil portadores de cartões corporativos do governo federal, nem todos são tão glutões no consumo quanto o reitor da Universidade de Brasília. A maioria é gente honesta e criteriosa. E muitos servidores nem sequer aceitaram portar cartões. Pressentiram que a ocasião faz o ladrão. Porém, tudo indica que uns tantos não tiveram o menor escrúpulo de torrar o nosso dinheiro em consumo desnecessário, supérfluo. E, descobertos, ainda insistem em nos chamar de bocós ao apresentar malabarísticas justificativas de como oneraram os cofres públicos.
Agora, a CPI promete investigar o uso e abuso dos cartões, para saber quais passaram de corporativos a cooperativos... Com o próprio bem-estar do usuário. O Planalto deu a mão à palmatória e se adiantou ao baixar instruções que limitam os saques em dinheiro. Reconhece, pois, que havia, sim, algo de podre no reino que não é o da Dinamarca.
Quem tem medo da CPI? Se portadores de cartões agiram com integridade, que se investigue e demonstre à nação que são caluniosas as denúncias de malversação. Se há corrupção, deve o governo se antecipar e punir exemplarmente os culpados. O que não se explica é temer transparência no uso do dinheiro público. Afinal, ele é, sim, de alguém. É de todos nós que trabalhamos, geramos riquezas e pagamos impostos. E esperamos retorno à altura de nossos direitos e necessidades. Temos, pois, o dever de fiscalizar e exigir prestação de contas da fortuna depositada em mãos das autoridades graças ao nosso sangue, suor e lágrimas. Apenas em janeiro deste ano, e sem a CPMF, o governo federal arrecadou R$ 62,5 bilhões.
Há 119 anos D. Pedro II escreveu em carta de 1º de janeiro de 1889: "A política de nossa terra cada vez me repugna mais compreendê-la. Ambições e mais ambições do que tão pouco ambicionável é".
Lidar com dinheiro alheio exige humildade, vocábulo que vem de húmus, terra, ter os pés na terra e não a cabeça nas nuvens. E requer auto-estima, saber viver segundo as limitações de seus próprios recursos, sem invejar os ricos ou pretender ingressar no seleto clube da opulência pelo beco da falcatrua.
Se corrupção existe é devido a uma única causa: a impunidade.
Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.
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Comentários
Nestes tempos de desconfiança generalizada, uma questão irremediavelmente toma conta do meu ser; se muitas vêzes me senti "jogado às traças" quando, nesse interiorzão de meu Deus fui abastecer o carro oficial e pasmem...não havia crédito? Não há outra saída a não ser ligar ao Órgão de origem e suplicar o empenho urgente (novamente) para poder realizar minha tarefa.
Contato esse realizado às nossas expensas...não aceitam ligação a cobrar.
Nada disso que ocorre comigo é o fim do mundo,são só contratempos; mas o pensamento me persegue...são tantos pesos e tantas medidas!
Quero chamar atenção, apenas, a enorme tempestade sobre esse tipo de despesa. Vejo que neste debate muitos colocam as exceções como regra, isto é, os casos de desvios são adotados como prática sistêmica, o que não é verdade. Considerar-mos isso é o chamar-mos todos os servidores públicos que possuem cartão de ladrões.
Quem trabalha fiscalizando esses gastos sabe que não é bem assim.
Infelizmente, num ambiente em que os profissinais do controle governamental são poucos, quem está sorrindo com todo esse alarde são os grandes fornecedores do país (empreiteiras, serviços de segurança e vigilância e tecnologia), pois com o tempo gasto para fiscalizar R$8000,00 e diversas notas fiscais miúdas, falta na análise dos grandes contratos do setor público. sobra
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