Um novo credo
- Detalhes
- Frei Betto
- 23/04/2007
Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de
todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos,
pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre
dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus,
bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e
dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da
fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada
ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro
humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.
Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça
e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem
diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta
manifestar sede e a água jorra.
Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas
de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e
no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que,
como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o
astro que me aquece.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e
se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé,
dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa
fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos
sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.
Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela
e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus
festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e
as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.
Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da
esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza
resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos
pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à
saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo
sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde
recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.
Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos
cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de
corpos excretando sumos a embriagar espíritos.
Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao
hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso,
Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto
frente à profusão de estultices humanas.
Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres
gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência
desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de
nosso ato de fé.
Frei Betto é escritor, autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do
Universo” (Ática), entre outros livros
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