Duas mulheres, uma tragédia
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- Frei Betto
- 24/06/2008
Talvez a auxiliar de serviços gerais Liliam Gonzaga da Costa, 43, nunca tenha assistido a uma peça de Sófocles e nem saiba quem é Antígona. Apesar de as duas estarem separadas por 26 séculos, têm em comum a fidelidade amorosa a seus parentes, o senso de justiça e a defesa do direito de os vivos prantearem seus mortos.
Antígona decidiu ignorar as ordens do poderoso Creonte, rei de Tebas, e deu sepultura a seu irmão Polinices, cujo cadáver o governante exigira permanecer insepulto, exposto à voracidade das aves e dos cães, para que o horror inibisse outros pretendentes ao trono.
Liliam queria apenas encontrar o filho Wellington Gonzaga de Costa, 19, estudante. No sábado pela manhã, ele não retornara do baile que, na véspera, fora em companhia dos amigos Marcos Paulo da Silva Correia, 17, estudante, e David Wilson Florêncio, 24, pedreiro. Os três moravam no Morro da Providência, no centro do Rio.
Antígona, levada à prisão, pôs fim à vida antes de saber que o sábio Tirésias convencera Creonte a libertá-la e sepultar o corpo de Polinices. Liliam, na manhã de sábado, soube a razão por que o filho não retornara: ao voltar do baile, ele e seus amigos foram abordados por soldados e oficiais do Exército. Não praticavam crimes, não usavam drogas, não faziam arruaças. Por quê?
Os militares levaram os três para serem interrogados no quartel do bairro de Santo Cristo. Ali, Liliam, afinal, viu Wellington e seus amigos vivos, na manhã de sábado. Assim como Hêmon, filho de Creonte, confiou que o pai haveria de suspender a punição a Antígona, Liliam não temeu pela sorte dos jovens. Sobretudo do filho, que sonhava em ingressar no Exército.
Liliam jamais poderia supor que Wellington, Marcos e David seriam condenados pelos militares que os seqüestraram ao mais cruel dos castigos: foram entregues a traficantes do Morro da Mineira, inimigos dos traficantes da Providência. No domingo à tarde, os corpos dos três foram encontrados, marcados de torturas e crivados de balas, no lixão de Gramacho.
Testemunhas presenciaram quando cerca de dez militares entregaram os rapazes aos traficantes da Mineira.
A crítica de Sófocles ecoa desde o século V antes de Cristo: por que as leis de Creonte não se inspiravam nas leis divinas? Em termos hodiernos, por que oficiais e soldados do Exército entregam inocentes a assassinos e traficantes de drogas? Por que policiais militares do Rio organizam milícias para extorquir moradores de áreas mais pobres?
Comemoram-se neste ano o 60º. aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Será que nos cursos de formação em nossas unidades policiais e militares o tema dos direitos humanos é encarado com seriedade ou é ridicularizado? Na segunda hipótese, abre-se a porta para que a farda se transforme em prepotência e a arma em recurso criminoso. A cidadania é violentada e a democracia, ameaçada.
Não é difícil saber como as empresas selecionam seus funcionários. Como são formados os que têm, por dever constitucional, a função de defender a população e a soberania nacional? Em treinamentos intensivos prejudiciais à saúde física e mental ou na familiaridade com grandes humanistas da história, como Sócrates, Jesus, Gandhi, Luther King, Chico Mendes e Betinho? Conhecem as tragédias gregas para que não se repitam miseravelmente como tragédias brasileiras?
As Forças Armadas e a Polícia Militar não merecem que a sua história, seu serviço à pátria e à população, seus exemplos de heroísmo e respeito às leis e aos cidadãos, sejam maculados pelos 21 anos de ditadura e por episódios macabros como o que sacrificou a vida dos amigos e do filho de Liliam. Por isso, não devem temer a verdade, irmã gêmea da justiça.
Antígona não viu a justiça prevalecer nem alcançou a tão almejada liberdade. Queira Deus que o futuro de Liliam e de tantas famílias favelizadas - por esta nação que concentra 75,4% da riqueza em mãos de 10% da população (Ipea, 2008) - não coincida com o da heroína grega.
Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.
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