Correio da Cidadania

Dilemas e limites do governo da mudança na Colômbia

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Gustavo Petro na ONU: 'quando Gaza morrer, a humanidade morrerá' - Opera  Mundi

O discurso do presidente Petro na Assembleia das Nações Unidas em Nova York foi muito importante. Ele afirmou que está cansado de falar aos poderosos do mundo durante esses dois anos em que participou de vários eventos e fóruns internacionais. “Eles não nos ouvem”, não fazem nada frente ao iminente colapso ambiental (que já está em curso) e, ao contrário, promovem guerras e genocídios como na Ucrânia, Gaza e, agora, no Líbano.

Agora, ele fala à “humanidade” e a convoca à ação coletiva e global para enfrentar o problema “de baixo para cima”, sem renunciar à escolha de governos que representem a causa dos bens comuns. Isso está muito bem, mas é necessário que essa convocação se concretize na Colômbia. Que a ação coletiva do nosso povo sirva de exemplo e incentivo para outros povos e nações do mundo. O problema é que os poderosos não vão “mudar” e não farão nada que beneficie o povo. É preciso obrigá-los, e para isso é necessário construir uma força social e política efetiva que os force a agir diante dos graves problemas que a humanidade enfrenta. Ao mesmo tempo, deve-se começar a construir um novo modo de produção que supere o capitalismo predatório, que é a causa de todos os males que vivemos.

O paradoxo que enfrentamos é que, enquanto nosso presidente fala duramente à oligarquia financeira global, na Colômbia ele compartilha o governo e quer fazer a “mudança” aliado a setores da burguesia burocrática (partidos tradicionais), que são agentes e servidores dessa oligarquia. Essa estratégia não apenas gera desconfiança entre amplos setores do povo, mas também diminui o entusiasmo entre suas próprias forças, como vimos nas últimas convocações para a mobilização social em apoio às chamadas “reformas sociais”.

Assim como o presidente Petro se cansou de falar aos grandes poderes capitalistas do mundo e convocou a humanidade a se organizar e se mobilizar para salvar a Terra da hecatombe ambiental ou nuclear, chegou o momento de romper com essa estratégia que tem um ar de politicagem e avançar na conquista de outros setores sociais e econômicos que não fazem parte do processo atual, ou que “abandonaram o projeto” precisamente porque percebem essas incoerências refletidas em muitas das ações do governo.

A assembleia popular de apoio às “reformas sociais”

Na assembleia de organizações sociais realizada e em parte convocada pelo governo progressista no último final de semana na Universidade Nacional (14 e 15 de setembro), participaram inúmeros delegados do movimento social colombiano, em suas diversas expressões organizativas. Centrais sindicais e sindicatos, organizações sociais de indígenas, camponeses e afrodescendentes, grupos ambientalistas, mulheres e ativistas de gênero, jovens, artistas, setores informais, etc. Pessoas animadas e convencidas.

Não foi visível a presença de outro tipo de organizações que fazem parte de movimentos sociais que nos últimos anos foram muito importantes nas lutas que começaram a se desdobrar desde 2008, no final da “hegemonia uribista” e governos subsequentes. Por um lado, os pequenos e médios produtores agrícolas (cafeicultores, arrozeiros, produtores de rapadura, produtores de leite, cultivadores de batata, fruticultores etc.) e, por outro, o que chamo de “precariado profissional” (técnicos, tecnólogos e profissionais urbanos).

Os primeiros iniciaram suas lutas na década de 1990, liderados pelos cafeicultores, que foram duramente atingidos pela política neoliberal e pelo fim do Acordo Internacional do Café. Os segundos se manifestaram massivamente em algumas cidades em agosto de 2013, especialmente em Bogotá, em solidariedade com os produtores de batata, cebola e leite de Boyacá e Nariño, que haviam sido desprezados e ofendidos pelo presidente Santos quando disse: “Não existe essa tal greve nacional agrária”.

O precariado profissional das cidades voltou a se manifestar em outubro de 2019, em defesa da política de paz de Santos e, novamente, em solidariedade com a população rural de nosso país, que começava a sentir a política antipopular de Iván Duque. Esse foi o antecedente mais importante do estopim social de 2021. Eles realizaram mobilizações massivas durante mais de um mês e, embora não tivessem uma organização formal que os representasse, conseguiram impor novas dinâmicas de protesto social, lideradas por “artistas alternativos”.

Politicamente, o precariado profissional começou a se manifestar na campanha presidencial de Antanas Mockus (2010). Centenas de milhares de jovens — de forma espontânea — desenvolveram uma série de atividades como expressão de uma “nova política”, na qual a luta contra a corrupção aparecia como uma de suas principais bandeiras. Além disso, introduziram novas formas de comunicação simbólica e artística, que implicavam romper com as práticas políticas e clientelistas da “velha política”. No entanto, a chamada “Aliança Verde” e seus principais líderes não foram capazes de canalizar esse espírito devido ao seu profundo caráter neoliberal.

Esses setores sociais também participaram do estopim social de 2021, mas foram “ofuscados” pelas chamadas “primeiras linhas” em algumas cidades. A primeira linha surgiu espontaneamente para se defender dos abusos policiais, mas, no final das contas, foi instrumentalizada pelo próprio governo de Duque e por alguns grupos armados ilegais, que ainda sonhavam com “sonhos insurrecionais” do passado e acreditavam cegamente que estávamos às vésperas de uma revolução social e política. Houve uma fissura entre a maioria dos profissionais precarizados e o “progressismo petrista”, que idealizou esses jovens “radicalizados” até o fanatismo. É preciso pensar em como reconstruir essa relação.

Já em outubro de 2019, os líderes do movimento dos jovens urbanos (em sua maioria, profissionais precarizados), especialmente em Bogotá, mostraram grande maturidade frente a essas expressões “vanguardistas” e “beligerantes”. Quando foi programada a mobilização de encerramento daquele ano (2019), a Guarda Indígena, que havia se deslocado para a capital, ofereceu-se para proteger as pessoas mobilizadas. Os jovens artistas que lideravam o movimento — com muito tato e respeito — recusaram esse tipo de “proteção” e pediram aos indígenas que marchassem com o grosso dos manifestantes. Disseram-lhes: “A massa da manifestação e seu espírito alegre, festivo e pacífico são a principal defesa”.

Uma atitude semelhante foi adotada pela maioria dos pequenos e médios produtores agrícolas e moradores de pequenas cidades de departamentos como Cundinamarca, Boyacá, Santander, Tolima, Huila e outras regiões, durante as primeiras semanas do “estopim social”. Realizavam bloqueios intermitentes em aliança com alguns transportadores, mas não bloqueavam totalmente as estradas, pois entendiam que eles mesmos seriam prejudicados por esse tipo de ação. Claro, essas atitudes correspondem ao seu caráter de classe e à experiência acumulada em lutas anteriores. Muitos deles se deslocavam massivamente para as cidades capitais ou intermediárias para participar dos protestos convocados pelo comando nacional de greve, mas não se deixaram levar a ações violentas.

A atualidade desses “outros” movimentos sociais

Atualmente, esses dois setores sociais, os pequenos e médios produtores agrícolas e a maioria dos profissionais precarizados, não se sentem representados pelo presidente Petro. Eles se distanciaram tanto do conteúdo das reformas sociais promovidas pelo governo quanto das formas como sua gestão tem sido conduzida. Embora muitos tenham votado no “progressismo”, eles discordam fundamentalmente das alianças políticas que estão no centro da estratégia do presidente Petro e não concordam com o “assistencialismo clientelista” que permeia o governo e as formas caudilhistas de governar.

A ausência desses setores sociais já é notada nas marchas e protestos que o presidente Petro convoca periodicamente. Isso também foi observado na assembleia da Universidade Nacional. Isso deve alertar os líderes do Pacto Histórico. É um importante sinal de alerta. Isso já aconteceu com o Partido dos Trabalhadores e com Dilma Rousseff no Brasil, durante os protestos contra a Copa do Mundo, e muitos desses jovens depois apoiaram Bolsonaro. Aconteceu e está acontecendo com Maduro na Venezuela, e está sendo vivenciado no Equador e na Bolívia. São fatos incontestáveis e instrutivos.

Sobre esse tema, o analista boliviano Rafael Bautista nos apresenta uma verdade que deve “tocar” a todos e tocar de verdade, sobre as políticas dos governos socialistas e progressistas que baseiam toda a sua ação política e governamental em “fazer obras” e oferecer subsídios e auxílios às pessoas mais vulneráveis e marginalizadas: “Nunca aprenderam que, sem uma revolução cultural, a ascensão social só produz o aburguesamento do povo”.

E é aí que entram em cena os setores sociais sobre os quais temos insistido (pequenos e médios produtores e o precariado profissional). Neles o governo e o movimento social como um todo devem se concentrar. São setores que não precisam de “subsídios improdutivos” ou desse assistencialismo clientelista. Eles precisam da aplicação real do que está no Plano de Desenvolvimento e que Petro pregava no início de seu governo. São setores que rejeitam o exagerado burocratismo que o governo está demonstrando, não aceitam a politicagem que impera em muitas áreas da administração e exigem políticas efetivas de industrialização do aparelho produtivo.

O complô assassino e o golpe de Estado

Por tudo isso, o povo comum não entende muito bem por que o presidente Petro alerta sobre um eventual golpe de Estado ou um complô para assassiná-lo, quando, no fundamental, ele tem governado com uma parte importante da classe política tradicional, e muitas de suas práticas clientelistas e politiqueiras não foram enfrentadas seriamente em nenhum nível da administração pública, nem no nível central, nem nos territórios.

É possível que alguns setores da direita, liderados pela “extrema direita uribista” (Maria Fernanda Cabal, Paloma Valencia, David Luna, Miguel Uribe, Vargas Lleras, etc.), queiram “derrubar” ou matar Petro, mas a realidade é que a maior parte da oligarquia financeira e da burguesia burocrática impulsiona uma estratégia de desgaste e bloqueio institucional com os olhos nas eleições de 2026. Eles sabem que qualquer tentativa de saída extrainstitucional para remover Petro do governo só provocaria uma reação popular de apoio ao presidente progressista, e isso já aprenderam com o erro do procurador Ordoñez em 2013.

Portanto, essa estratégia “tensionante” de tentar mobilizar o povo contra o golpe de Estado e contra um possível complô para assassinar o presidente não parece ser a mais eficaz. O “velho Fidel” falava e revelava tentativas de assassinato apenas depois de neutralizá-las e derrotá-las. Na verdade, a resposta a qualquer tipo de tentativa de golpe ou assassinato é romper definitiva e radicalmente com a politiquice e implementar políticas para apoiar e estimular os produtores, especialmente os pequenos e médios. Essa combinação de ações motivará amplos setores da sociedade a apoiar com decisão, não apenas nas ruas, mas também na ação cotidiana e produtiva, um governo que propõe soluções viáveis e possíveis.

Na Colômbia, a maioria do povo não apoia, por enquanto, nenhuma fórmula extrainstitucional. Não há condições para arriscar “saltos no escuro”. Todos sabemos que existem poderes “paralelos” (de direita, de esquerda e delinquenciais) que — como demonstraram no estopim social — podem penetrar qualquer tipo de mobilização social e nos levar a situações imprevisíveis e incontroláveis.

É hora de combinar o discurso de Petro na ONU com a ação prática dos pequenos e médios produtores e dos profissionais precarizados das cidades. Só assim avançaremos de verdade em direção a mudanças estruturais que tenham “carne e sangue” na vida cotidiana de nossos povos.

Fernando Dorado é ativista social, dirigente sindical de trabalhadores do setor de saúde e eletro-mecânicos. Colabora com movimentos sociais do Vale do Cauca, Colômbia. Deputado entre 1994-1997.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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