Peixinhos e tubarões
- Detalhes
- Frei Betto
- 21/07/2008
Angélica Aparecida de Souza Teodoro, 18 anos, mãe de um filho de dois anos, estudou apenas o 1º. grau. Trabalha como empregada doméstica, mas encontrava-se desempregada, ao ser presa, em novembro, dentro de um mercadinho do Jardim dos Ipês, na capital paulista, acusada de roubar uma lata de manteiga da marca Aviação, de 200 gramas, no valor de R$ 3,10. Levada para o 59º Distrito Policial, conhecido como Cadeião de Pinheiros, recebeu voz de prisão do delegado Marco Aurélio Bolzoni.
Por subtrair mercadoria no valor de R$ 3,10, Angélica passou na prisão o Natal, o Ano-Novo e o Carnaval, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o pedido de defesa da doméstica, o indeferiu. Angélica foi solta dia 23 de março, mais de quatro meses depois, graças à liminar do ministro Paulo Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.
O Brasil e sua Justiça parecem postos de cabeça para baixo. Há uma inversão total de valores e critérios. Um publicitário vem a público e declara ter recebido, via caixa dois, R$ 10 milhões de reais numa conta clandestina no exterior, e fica por isso mesmo, protegido por direitos que lhe foram garantidos pelo STF, reagindo com escárnio às interrogações dos parlamentares incumbidos de apurar corrupções.
Um publicitário mineiro faz biliardários empréstimos ao tesoureiro de um partido político, sem revelar a origem dos recursos, porém destinando-os ao suborno de deputados federais, e fica por isso mesmo.
Um deputado federal, cassado após ocupar o cargo de presidente da Câmara dos Deputados, achaca em R$ 7 mil o proprietário de um restaurante e ninguém lhe dá voz de prisão.
Um alto funcionário dos Correios é filmado embolsando propina no valor de R$ 3 mil, a polícia não é chamada e ele continua livre, prova viva de que crimes de colarinho branco merecem a cumplicidade de setores da justiça.
Quando políticos, banqueiros e empresários processados por desvios de recursos públicos devolverão o que roubaram? Quem pune os gastos exorbitantes de um reitor de Universidade de Brasília, os desvios de recursos do BNDES, as maracutaias nas privatizações sob o governo FHC?
Fica a impressão de que, por baixo de tanta corrupção, há uma extensa rede de cumplicidade. Tubarões não são punidos para evitar que entreguem outros tubarões à justiça. Neste país, basta ter dinheiro, bons advogados e relações nas instâncias de poder para ficar assegurada a impunidade. Enquanto isso, os pobres, sob simples suspeita, sofrem torturas ou levam bala antes de serem inquiridos ou investigados.
Os peixinhos, como Angélica, ficam meses na cadeia por causa de R$ 3,10. Os tubarões, imunes e impunes, são a prova viva de que o crime compensa – de fato e de direito – desde que o assalto abocanhe valores em milhões de reais. De preferência dinheiro dos cofres públicos.
Vale o provérbio: "Quem rouba 1 real é ladrão, quem rouba 1 milhão é barão".
Estatísticas comprovam que a polícia do governador Sérgio Cabral, do Rio, matou mais este ano do que os crimes cometidos em São Paulo por bandidos. Quem decepa a mão assassina do Estado?
No Brasil, quando a polícia pára uma pessoa de posses, a pergunta é: "Sabe com quem está falando?" Em outros países é o policial que faz a pergunta: "Quem você pensa que é?"
Quando estive na Inglaterra, nos anos 80, vi pela BBC – uma TV estatal – o sobrinho da rainha Elizabeth II ser levado a julgamento. Parado por uma patrulha rodoviária, constatou-se que ele dirigia sob efeito de álcool. Cassaram-lhe a carteira por seis meses.
Dois meses depois foi parado por outra patrulha. Pediram-lhe a carteira. Não tinha. Então apelou para o jeitinho brasileiro: "Sabe com quem está falando? Sou o príncipe fulano". O guarda insistiu em ver os documentos. O rapaz voltou ao bate-boca. Então o policial disse a ele: "Um de nós dois está errado. Você está preso e a justiça dirá quem de nós tem razão".
Televisionado para todo o país, o príncipe se viu obrigado, pelo juiz, a pedir desculpas ao guarda e teve a sua licença de motorista cassada por cinco anos.
Assim se faz cidadania.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luis Fernando Veríssimo e outros, de "O desafio ético" (Editora Garamond), entre outros livros.
{moscomment}
Comentários
"Tudo como Dantes no quartel de Abrantes".
Como sempre, seu artigo é porreta! Uma aula de ética e cidadania na realidade brasileira.
Só não entendo porque, amigo do rei, não está no palácio a influenciar as decisões de quem tem poder, popularidade, conhecimento para governar o Brasil no caminho da ética e da cidadania.
Penso que o próprio Código Penal já traz a discriminação, na medida em que prevê altíssima pena para quem roube um relógio, mesmo sem exercer violência física, enquanto trata o caso de omissão de socorro, por exemplo (para não falar nos crimes financeiros), como delito de pequeno potencial ofensivo, passível de transação. Isso porque, claro, quem rouba relógio são os pobres. Quem pratica crimes financeiros e eventualmente omissão de socorro, são os ricos.
De outra parte, o próprio perfil do Judiciário autoriza a que este poder aprecie os crimes a partir da sua visão de mundo, isto é, assentado num olhar de classe - no caso, a classe dominante. Tudo se encaixa quando somamos a composição dos tribunais superiores, formatados por conta de indicações do poder constituído e integrados, obviamente, por pessoas ligadas à necessidade de reprodução da ordem vigente, comprometidas que são com o "establishment".
Assine o RSS dos comentários