Correio da Cidadania

Uma mulher revolucionária

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Estive em Bananeiras (PB); preguei o retiro das monjas carmelitas descalças, 19 mulheres, quase todas jovens, que vivem enclausuradas. É admirável pensar que as sementes dessa comunidade nordestina foram semeadas, há quatro séculos e meio, na Espanha, por Teresa de Jesus.

 

Filha de uma família burguesa, Teresa nasceu em Ávila, em 1515. Ingressou no mosteiro aos 20 anos, mas seu caso de amor com Deus só se revelou uma grande paixão nove anos depois, em 1544. Sentia-se arrebatada pela experiência mística.

 

Num momento histórico em que o cartesianismo cindia a unidade entre espiritualidade e teologia, e a Reforma protestante sobrepunha a experiência de fé à doutrina da autoridade eclesiástica, Teresa tornou-se suspeita aos olhos da Inquisição.

 

Entre 1558-1560, seis teólogos a mantiveram sob observação, prontos a desmascarar o demônio que estaria por trás da espiritualidade dela...

 

O que Teresa experimentava não eram visões, e sim a certeza da presença do Amado em seu coração: "Esta grande graça é de Deus, e muito preze a alma a quem foi dada, porque é muito intensa oração, mas não é visão. Entendo que ali está Deus por seus efeitos que, como digo, produz na alma, pois daquele modo quer o Senhor dar-se a sentir" (Vida 27, 4).

 

O inquisidor Fernando de Valdés combateu a "espiritualidade afetiva" e publicou o índice de livros proibidos (1559), sobretudo romances, alguns da preferência de Teresa: "Quando se tiraram do público muitos livros em língua vulgar, para que não fossem lidos, senti muito, porque me recreava lendo alguns, e já não o podia fazer por o permitirem apenas em latim. Disse-me o Senhor: "Não tenhas pena, eu te darei livro vivo" (Vida, 26, 6).

 

Jerônimo de São José conta que as monjas estranhavam Teresa: "Por que Teresa se mete com essas invencionices? Para que esses extremos e novidades, tanta oração e contemplação, ficar ali às escondidas nos desvãos e rincões da casa?".

 

Houve um momento em que ninguém queria confessar Teresa: "Temia que viesse a não haver quem me quisesse confessar, pois todos fugiam de mim. Não fazia senão chorar" (Vida 28, 14). "Fartas afrontas e trabalhos passei em dizê-lo, e fartos temores e fartas perseguições. Tão certo lhes parecia que eu tinha demônio que algumas pessoas me queriam exorcizar. Disto, a mim, pouco se me dava; mas sentia quando via que os confessores temiam confessar-me ou quando sabia que de mim lhes diziam alguma coisa" (Vida 29, 4). "Não entendo estes nossos medos: é demônio! É demônio! Quando podemos dizer: Deus! Deus!" (Vida 25, 22).

 

Diz são Paulo na 1a Carta aos Coríntios: "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja" (14, 34-35).

 

Em 1970, o papa Paulo VI ousou discordar do Apóstolo e proclamar Teresa "doutora da Igreja". Militante da fé, reformadora e fundadora, ela não se calou na Igreja e lutou em prol da liberdade religiosa das contemplativas e se assumiu como mestra espiritual. Deixou-nos uma obra de alto valor espiritual e literário.

 

Para Teresa, vida ativa e contemplativa caminham juntas: "quando a alma está nesse estado nunca deixam de trabalhar, quase juntas, Marta e Maria; porque no que é atividade e parece exterior, opera o interior, e quando as obras ativas saem desta raiz, são admiráveis" (Meditações sobre os Cânticos 7, 3; cf. Exclamações 5, 2).

 

Ao transvivenciar, em 1582, aos 67 anos, Teresa havia fundado 17 mosteiros na Espanha. Numa Igreja marcada pelo academicismo da escolástica e a suspeita de que místicos eram insubordinados ao controle eclesiástico, Teresa abriu as portas de uma espiritualidade amorosa, interiorizada, alegre, que se alcança através da meditação, da renúncia a tudo que nos aliena e ao supérfluo, da confiança de que Deus nos ama apaixonada e incondicionalmente.

 

A grande revolução operada por Teresa na espiritualidade foi justamente inverter os pólos: não são os nossos méritos que nos tornam mais próximos de Deus, e sim nossa capacidade de nos fazer mais próximos de nossos semelhantes e nos abrir ao amor gratuito de Deus.

 

As monjas de Bananeiras mantêm uma escola gratuita para 181 alunos, crianças, jovens e adultos. Nada cobram. A prefeitura ajuda pouco. As professoras ganham um salário irrisório. Liguei para o governador Cássio Cunha Lima, da Paraíba. Prometeu-me melhorias. Tomara.

 

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

 

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Comentários   

0 #3 Francisco Fabian 14-11-2008 15:51
É simplesmente maravilhoso que a nossa Igreja Católica Apostólica Romana, tão presa aos dogmas e forte hierarquia, também tenha produzido pensadores tão sensíveis como Frei Beto e as Teresas mundo afora, mas que demorando em reconhecê-los com profundidade, perde o controle do seu povo para os Protestantes, que a cada dia surpreendem com a forma simples de catequizar, arrebanhando milhares de brasileiros quase analfabetos, que por ignorância pura, muitas vezes deturpam tudo e contribuem muito pouco para o trabalho social que precisa ser feito, num pais que continua produzindo milhões de miseráveis.
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0 #2 Uma mulher revolucináriaHélio 15-09-2008 14:22
Não é preciso ser católico para reconhecer essas mulheres maravilhosas que, desde os tempos de Jesus, souberam se doar, incondicionalmente, ao próximo, por amor, não só através da oração, mas no contato direto com o próximo. Só prá lembrar: Madre Teresa de Calcutá e as nossas Irmã Dulce e Zilda Arns. Maravilhosas!!!
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0 #1 UMA MULHER REVOLUCIONÁRIAOrlando Batista dos Santos 11-09-2008 07:37
A espiritualidade,sendo comunhão permanente com as forças superiores, sempre foi vista com reservas por aqueles cuja visão não ultrapassa o que está abaixo dos pés.
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