Morte, tema-tabu?
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- Frei Betto
- 31/10/2008
O próximo 2 de novembro é dia de finados, dos que findaram, os mortos. Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Mas quem encara este destino inelutável?
Entre crianças de seis anos de idade convidadas a escrever cartas a Deus, uma delas propôs: "Deus, todo dia nasce muita gente e morre muita gente. O Senhor deveria proibir nascimentos e mortes, e permitir a quem já nasceu viver para sempre".
Faz sentido. Evitar-se-iam a superpopulação do planeta e o sofrimento de morrer ou ver desaparecer entes queridos. Mas quem garante que, privados da certeza de finitude, essa raça de sobre-humanos não tornaria a nossa convivência uma experiência infernal? Simone de Beauvoir deu a resposta no romance "Todos os homens são mortais".
É esse ideal de infinitude que fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela promissora indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de ginástica, livros de auto-ajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contra-indicado, exceto quando levado à obsessão, que produz anorexia, ou à atitude ridícula de velhos que se envergonham das próprias rugas e se fantasiam de adolescentes.
Conto sete amigos com câncer nos últimos dois anos. Dois, em estado terminal, me chamaram para conversar sobre a morte. Um deles observou: "Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, é falar de morte". Concordei. A morte era vista como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso, quase uma vergonha social.
A morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura do prolongamento indefinido da vida, da juventude perene, da glamourização da estética corporal. Nem sequer se tem mais o direito de ficar velho. Nós, que já temos acesso ao Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a "vergonha" da velhice: terceira idade, melhor idade ou, como li na lataria de uma van, "a turma da dign/idade". A usar eufemismos, sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos a ela.
No tempo de meus avós morria-se em casa, cercado de parentes e amigos, no espaço doméstico impregnado de pessoas e objetos que constituíam a razão de ser da existência do enfermo. Hoje, morre-se no hospital, um lugar estranho, cercado por pessoas – médicos, enfermeiras, auxiliares – cujos nomes ignoramos. A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a medicação que elimina a dor. Não há quase choro nem vela nem fita amarela. O rito de passagem – unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas – é quase imperceptível.
"Morrer é fechar os olhos para enxergar melhor", disse José Martí por ocasião da morte de Marx. As religiões têm respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. Isso é um consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto, a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.
Morre-se abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem culpa.
A morte é, como frisou Sartre, a mais solitária experiência humana. É a quebra definitiva do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, o ágape, a comunhão com Deus.
A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem os adornos de condição social, nome de família, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental. Os místicos a encaram com tranqüilidade por exercitarem o desapego frente a todos os valores finitos. Cultivam, na subjetividade, valores infinitos. E fazem da vida dom de si – amor. Por isso Teresa de Ávila suspirava: "Morro por não morrer".
Padre Vieira, cujo quarto centenário de nascimento se comemora este ano, advertia no sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: "No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de nossas obras".
Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista – uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
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Comentários
Pessoalmente,concordo plenamente com o poeta quando nos define como "cadáveres adiados",mas a grande beleza está em fazer da da certeza inelutável da nossa finitude a mola propulsora de uma vida cheia de sentido,de utopias,de coragem.
E a vida precisa ser sentida em todas as suas dimensões,todas as suas alegrias,todas as suas tistezas.
Acho ridículos tb esses eufemismos(melhor idade e afins)
Concordo com o Jô Soares quando ele diz que ,a rigor,só há duas idades:Vivo e morto.
Cabe a nós,então,fazer da certeza da nossa finitude a poesia de nossa existência.
O comentário da sexta-feira, dia da morte do sujeito, era somente este. Quem era o cara ? Como ele morreu ?
Ouvia-se falar que ele tinha sido atropelado por um caminhão. E foi mesmo. Mas o que mais chamava atenção nas conversas por todos os cantos era por que ele não estava na calçada, por que ele não tentou atravessar a avenida pela faixa de pedestre ou por que ele estava naquela esquina de bicicleta, sendo que a empresa paga o vale transporte para vir ao trabalho de ônibus. Não ouvi nenhum comentário do tipo: Será que ele tinha família ? Filhos ? Onde trabalhava ????
Acho que esta situação se encaixa muito dentro desse texto onde foi comentado que a morte nada mais é, para aqueles que "chegam" a ela, de um simples fracasso do indíviduo. É lamentável saber que hoje nem a vida e nem a morte tem mais valor.
Esta tua matéria me tocou profundamente, não consigo comentá-lo, só sei que estou sentindo agora um grande desejo de refletir a respeito.
Muito obrigado.
J. Tadeu Genaro
Penso que o texto do frei Beto tem este problema.
Refere-se apenas a aquelas mortes onde o candidato pode ter seus últimos suspiros em reflexões e/ou orações, com acolhimento de amigos, confidentes e familiar, que dê para que o rito se configure como descreve frei Beto acima. Quase como cenas possíveis até nas elenovelas, tão criticadas embora, ao contrário do que afirma o texto, têm as suas cenas de velótrios e enterros, sim. Também adoram cenas de casamentos.
Mas, temos de nos lembrar TODOS OS DIAS que a maior parte das mortes que ocorrem hoje NÃO são mortes "vividas" como tal. São sem "glamour" e sem confidências.
Mas sim, fazem parte de violências e inqüidades outras, que impedem o "candidato" de fazer qualquer reflexão, que não seja conduzida pelo desespero, agonia dolorosa, quando não pior.
Portanto, não sendo religioso, mas sabendo muito bem o que é a genuína Compaixão de Cristo, que preferencialmente se atém aos desvalidos, perseguidos e ignorados, aí sim o frei Beto diz acertadamente, banaliza a morte, como se fosse artigo de consumo.
Mas, a minha insistência em exigir textos comprometidos com uma visão mais trágica e perversa das "mortes sociais", estas sim carentes de textos filosóficos que as aponte e analise, é um contraponto para que qualquer pensamento não seja elevado à caegoria de "ensaio filosófico", pela pouca profundidade que têm ou por se aterem, ao meu ver como faz o texto acima,naqueles que mais ou menso tiveram o acolhimento necessário para seus últimos momentos.
Afinal, emora não religioso, fui educado em uma sociedade Cristã, e conhecedor de familiares e amigos que souberam traduzir de forma popular e não elitista, o verdadeiro sentimento Cristão. Inclusive frente ao acolhimento necessário dos desvalidos, em seus momentos finais, muitas vezes evitáveis, por simples ações, estas sim, escondidas hje.
Precisamos resgatar o humano 'direito à morte' - sem essa perspectiva (inelutável, como ele bem escreve), não conseguimos viver: estamos continuamente apenas lutando por não morrer. Isso é já estar morto, enganando-se de 'estar vivendo eternamente'.
Como sempre, Frei Betto está de parabéns por sua lucidez e profunda e sensível percepção do sofrimento humano inserido no momento social-cultural-histórico.
Sônia
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