A privatização do setor elétrico está de volta?
- Detalhes
- Frei Betto
- 17/09/2007
Não há
dúvida de que, no governo Lula, a malha de transmissão de energia
elétrica cresceu muito mais do que em qualquer outro. “Nunca na história deste
país” se investiu tanto no setor. Isso é positivo e garante o fornecimento de
energia elétrica às diversas regiões do país. O consumidor, hoje,
ganha. Ganhará sempre?
O governo federal promove, via ANEEL, leilões para expandir o sistema de
transmissão elétrica do país. Nos cinco leilões entre 2000 e 2002 (era FHC), o
deságio baixíssimo assegurou altos rendimentos às empresas privadas. Em média,
lucravam 20% sobre o valor do investimento. E não se permitia que empresas
estatais, como Furnas, participassem dos leilões. O governo impediu Furnas de
participar dos leilões das linhas de transmissão Ouro Preto-Vitória, Norte-Sul2,
Itumbiara-Marimbondo etc. Quando Furnas obteve permissão de participar foi
porque não houve interesse do capital privado. E a estatal saiu no lucro.
Agora, no governo Lula, os ágios dos seis leilões subiram de 30 a 50%, esfriando a farra
dos elevados ganhos do setor privado. As empresas arremataram linhas a serem
construídas por preços bem menores do que se fazia no passado, e muito abaixo
do preço de referência da ANEEL.
Bom para o consumidor
brasileiro que, todo mês, paga na conta os custos de geração, transmissão e
distribuição de energia, e mais os impostos embutidos. O que também favorece a
competição entre as empresas do setor. Entretanto, o filé mignon fica com as
grandes empresas espanholas (Abengoa, Isolux, Elecnor, Cobra e Cymi), e a
colombiana Isa.
No setor de transmissão, os riscos do investidor são pequenos. Em média,
as grandes linhas de transmissão leiloadas são construídas em cerca de 20
meses. É rápido o retorno do capital investido. Já as hidrelétricas
exigem anos de estudos, questões complexas de compensação
ambiental, e tempo de construção de 3 anos,
para as pequenas, e 5 para as médias; ou mais, para as gigantes, como a do Rio
Madeira.
Este retorno financeiro, calculado, está embutido no lance do leilão. O
ganhador, a curtíssimo prazo, já começa a receber seu capital de
volta, em prestações mensais garantidas por 30 anos (antes
corrigidas pelo IGPM e, agora, pelo IPCA). Daí a entrada maciça de
empresas estrangeiras.
Essas empresas podem ser financiadas diretamente pelo BNDES (desde 2003
já captaram cerca de R$ 5,5 bilhões); contratar a si mesmas na execução das
obras e negociar preços; refinanciar o capital próprio (equity) investido
no empreendimento (o BNDES financia cerca de 70%; a empresa
entra com 30% - podendo obter financiamento fora do Brasil); atuar em
bloco (quem vai controlá-las?) e, se desejarem, não operar as linhas ganhas,
negociando-as.
Já as empresas do setor elétrico estatal não têm
liberdade para negociar com seus fornecedores de
serviços e equipamentos, pois se regem pela lei de licitações, a Lei
8666. Tudo que fazem deve ser público e transparente. E Furnas, Eletronorte,
Eletrosul e Chesf estão proibidas, pelo governo, de serem financiadas
diretamente pelo BNDES. Se quiserem obter financiamento do BNDES, devem se
associar a empresas privadas na proporção de 49% para as estatais e 51% para as
privadas!
É a desestatização anunciada, a prazo,
mas certa, do setor de transmissão, a espinha
dorsal do setor elétrico brasileiro. As linhas ficarão em mãos de empresas
privadas ou mistas (sob controle do capital privado).
Já as pequenas linhas estão ao alcance das estatais, que
podem adquiri-las com capital próprio. Um fenômeno curioso: uma estatal federal
pode se associar a uma estatal estadual - desde que esta
detenha 51%. A Cemig, majoritária, e Furnas, minoritária, ganharam
juntas a pequena linha de transmissão (75 km) entre a usina de Furnas e a cidade de
Pimenta (MG). É o que resta às estatais. Com capital próprio, Furnas controla
apenas linhas de transmissão pequenas, como a de Campos-Macaé (92 km) e a Tijuco
Preto-Itapeti-Nordeste (50 km).
A
privatização soma-se à desnacionalização
O que o consumidor gostaria de entender é por que as estatais federais são
minoritárias nas grandes linhas? A resposta, simples, é de fazer corar quem
esperava do PT um governo minimamente nacionalista: não se permite que sejam
financiadas pelo BNDES. E não podem captar dinheiro fora do país, como fazem as
transnacionais. Assim, sobra às empresas federais apenas a possibilidade de,
nos leilões, fazerem lances, com capital próprio, em linhas pequenas.
Entre 2000 e 2002, foram realizados
investimentos no setor de transmissão da ordem de R$ 3,8 bilhões, com
deságios mínimos. À época, empresas estrangeiras obtiveram
49% das linhas leiloadas; as empresas privadas brasileiras, 36%; as
parcerias estatais/privadas, 15%. As estatais, sozinhas, abocanharam
apenas 13,5% dos trechos leiloados.
Já entre 2003 e 2006, quando os investimentos totalizaram cerca de R$ 9,5
bilhões, as empresas estrangeiras avançaram para 65% dos
trechos leiloados. As associações de empresas estatais e privadas
(estas sempre majoritárias) alcançaram 25% das linhas. As estatais
recuaram e as empresas nacionais não agüentaram a concorrência.
Uma análise dos leilões de 2006, onde os investimentos foram de R$ 1,8 bilhão,
mostra que as empresas estrangeiras conseguiram vencer em 84% dos trechos
de linhas de transmissão leiloados.
Ora, graças às estatais, o Brasil construiu, com absoluto sucesso, um dos
maiores sistemas de produção, transmissão e
distribuição de energia elétrica do mundo. A
concorrência, como está agora, é desigual. As estatais concorrem com as
empresas privadas sem igualdade de condições. Estão perdendo terreno. Tudo
indica que, a prazo, as estrangeiras dominarão o setor. O reflexo disso
aparecerá no bolso do consumidor e na soberania do país: energia mais cara, e
mais riqueza produzida aqui levada para o exterior pelas transnacionais.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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