Socialismo, contradições e perspectivas
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- Frei Betto
- 16/06/2009
O socialismo é estruturalmente mais justo que o capitalismo. Porém, em suas experiências reais não soube equacionar a questão da liberdade individual e corporativa. Cercado por nações e pressões capitalistas, o socialismo soviético cometeu o erro de abandonar o projeto originário de democracia proletária, baseado nos sovietes, para perpetuar a maldita herança da estrutura imperial czarista da Rússia, agora eufemisticamente denominada "centralismo democrático".
Em países como a China é negada à nação a liberdade concedida ao capital. Ali o socialismo assumiu o caráter esdrúxulo de "capitalismo de Estado", com todos os agravantes, como desigualdade social e bolsões de miséria e pobreza, superexploração do trabalho etc.
Não surpreende, pois, que o socialismo real tenha ruído na União Soviética, após 70 anos de vigência. O excessivo controle estatal criou situações paradoxais, como o pioneirismo dos russos na conquista do espaço. No entanto, não conseguiu oferecer à população bens de consumo elementares de qualidade, mercado varejista eficiente e uma pedagogia de formação dos propalados "homem e mulher novos".
O socialismo caiu no engodo do capitalismo ao projetar o futuro da sociedade em termos de produção, distribuição e consumo. O objetivo dos dois sistemas se igualou, mudando apenas os meios: o primeiro, por força do estatismo; o segundo, a apropriação privada dos bens e do lucro.
O socialismo só se justifica, como sistema e proposta, na medida em que tem por objetivo não o bom funcionamento da economia, e sim das relações humanas: a solidariedade, a cooperação, o respeito à dignidade do outro, o fim de discriminações e preconceitos, enfim, a prevalência dos bens infinitos sobre os bens finitos.
Nesse cenário, Cuba é uma exceção e um sinal de esperança. Trata-se de uma quádrupla ilha: geográfica, política (é o único país socialista da história do Ocidente), econômica (devido ao bloqueio imposto criminalmente pelo governo dos EUA) e órfã (com o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, em 1989, perdeu o apoio da extinta União Soviética).
O regime cubano é destaque no que concerne à justiça social. Prova disso é o fato de ocupar o 51º lugar no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) estabelecido pela ONU (o Brasil é o 70º) e não apresentar bolsões de miséria (embora haja pobreza) nem abrigar uma casta de ricos e privilegiados. Se há quem se lance no mar na esperança de uma vida melhor nos EUA, isso se deve às exigências, nada atrativas, de se viver num sistema de partilha. Viver em Cuba é como habitar um mosteiro: a comunidade tem precedência sobre a individualidade. E se exige considerável altruísmo.
Quanto à liberdade individual, jamais foi negada aos cidadãos, exceto quando representou ameaça à segurança da Revolução ou significou empreendimentos econômicos sem o devido controle estatal. É inegável que o regime cubano teve, ao longo de cinco décadas (a Revolução completou 50 anos em 1º de janeiro deste ano), suas fases de sectarismo, tributárias de sua aproximação com a União Soviética.
Porém, jamais as denominações religiosas foram proibidas, os templos fechados, os sacerdotes e pastores perseguidos por razões de fé. A visita do papa João Paulo II à Ilha, em 1998, e sua apreciação positiva sobre as conquistas da Revolução, mormente nas áreas de saúde e educação, o comprovam.
No entanto, o sistema cubano dá sinais de que poderá equacionar melhor a questão de socialismo e liberdade através de mecanismos mais democráticos de participação popular no governo, de interação entre Estado e organizações de massa e maior rotatividade no poder, para que as críticas ao regime possam chegar às instâncias superiores sem serem confundidas com manifestações contra-revolucionárias.
Sobretudo na área econômica, Cuba terá de repensar seu modelo, facilitando à população acesso à produção e consumo de bens que englobam desde o pão da padaria da esquina às parcerias de empresas de economia mista com investimentos estrangeiros.
No socialismo não se trata de falar em "liberdade de" e sim em "liberdade para", de modo que esse direito inalienável do ser humano não ceda aos vícios capitalistas que permitem que a liberdade de um se amplie em detrimento da liberdade de outros. O princípio "a cada um, segundo suas necessidades; de cada um, segundo suas possibilidades" deve nortear a construção de um futuro socialista em que o projeto comunitário seja, de fato, a condição de realização e felicidade pessoal e familiar.
Frei Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira", que a editora Rocco faz chegar este mês às livrarias.
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Comentários
Li o texto de Frei Betto com atencao e estou feliz com seus analises. O verdadeiro sosialismo è humano mais o povo não acredita mais nela. Temos que trabalhar muito para ter a confianca do povo, por isso o capitalismo selvagem avanca e nos sufoca. Voce nao pode ser revolucionario/a se nao amo o povo e a si proprio. O Jorge Amado escrevou; que conheceu muitos comunistas, mais eles/as entraram no partido com odio da vida e de si proprio, somente aquela que amo pode querer um mundo melhor. Aqueles/as que nao ama, nao fica no partido muito tempo.Com o Lula o Brasil tem mudado mais falta muito ainda para nosso povo ter accesso a uma vida digna. Aqui na noreuga temos social democratia mais o capitalismo come cada dia mais sua estrutora.
Maria 44 anos, assiatente social, brasileira e mora na noruega a 30 anos.
Gostaria de escrever com pessoas da esquerda no Brasil
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O seu objetivo, obviamente, não é analisar os erros do passado mas, a meu ver, a reprodução dos mesmos erros no presente.
De um modo geral, as esquerdas brasileiras, inclusive as auto-consideradas autênticas e oposicionistas, têm recorrido a práticas semelhantes àquelas criticadas por Frei Betto.
Em especial, há a dificuldade ou mesmo recusa de atuar no sentido da organização e a participação direta popular.
No lugar disso, há a prática de cúpula, na super-estrutura, que concebe sempre o povo como retaguarda e massa (muitas vezes de manobra). Não se tem uma iniciativa sequer da militância organizada de esquerda no país que realmente coloque a organização do meio popular como centro. O que se tem é atuação de vanguarda que tenta dirigir as massas, o que nunca dará resultado positivo como os exemplos do socialismo real já demonstraram fartamente.
Acho que Frei Betto, com a sua sutileza peculiar e capacidade de oratória, tenta sempre levar a uma necessária auto-crítica da esquerda brasileira. Mas, ao meu ver, as esquerdas continuam resistentes. Até quando?
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