Meu irmão
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- Frei Betto
- 06/07/2009
Se a vida é uma surpresa, a morte é surpreendente. Jogados nesta existência como resultado de um encontro amoroso entre um homem e uma mulher, lamentamos abandonar o cálido acolhimento do útero, o reino ignaro da consciência, a fruição permanente, o aflorar dos tecidos, dos músculos, dos membros, dos órgãos, do ser. Súbito, na sequência de poucos meses, eis-nos castrados do vínculo placentário e atirados no fluxo planetário.
Saímos sob protestos. Os pulmões ardem em choro, a fome e o desamparo nos impelem à busca sôfrega do seio materno. Rompido o laço orgânico, seja bem-vindo o abraço afetuoso. Eis a vida, a espaçosa vida, o lento desabrochar para uma aventura a culminar na morte.
Tonico, meu irmão caçula, transvivenciou na manhã de 11 de junho de 2009, quinta, festa de Corpus Christi. Sofria de pequena lesão cerebral causada por acidente de moto, aos 16 anos. Ficou impedido de trabalhar e estudar.
Tivesse eu imaginado, em seu proveito, a mais delicada passagem desta vida para a outra, com certeza não teria suficiente fantasia para alcançar o que sucedeu. Dormia quando o coração cessou. Passou de um sono a outro, sem dor ou consciência do próprio fim, tão silencioso e discreto como viveu seus 47 anos de vida. Trazia o semblante quase risonho.
Desembarquei naquela manhã em São Paulo, ao retornar da Europa. Às 9h em ponto liguei para a casa de minha mãe, em Belo Horizonte. Dei-lhe a notícia da boa viagem, mormente porque viajara pela Air France que, havia menos de duas semanas, sofrera terrível desastre no vôo Rio-Paris, que ceifou a vida de 228 pessoas. Pedi em seguida para falar com Tonico. Do corredor, onde fica o telefone fixo, minha mãe chamou por ele. Não houve resposta. Nos feriados e fins de semanas tinha por hábito despertar mais tarde. Minha mãe foi até o quarto dele, insistiu para que me atendesse. Entregue ao sono profundo, seu braço direito caía ao lado da cama. De volta à ligação, mamãe disse que ele dormia a sono solto. Pedi não incomodá-lo, era feriado, deixasse que acordasse e, então, me telefonaria.
Desligada a chamada, o pressentimento tocou o coração de mãe. Retornou ao quarto e constatou que ele já não respirava. O corpo, entretanto, mantinha a temperatura normal. O semblante expressava serenidade.
Nos dez dias anteriores, a família percebeu mudanças de comportamento em Tonico. Deixara de tomar banho, logo ele que primava pelo asseio. Todas as manhãs, numa rotina quase mecânica, fechava-se por duas horas no banheiro, fazia uma tríplice barba e, sob o chuveiro, gastava em excesso água, sabonete e xampu. Ao se vestir, perfumava-se perdulariamente. Frente ao espelho, demorava ao se pentear.
Súbito, decidiu não cuidar-se. Por um dia, ocasionalmente ocorria: a pressa de sair, a ansiedade por um passeio, a preguiça, o estado de ânimo. Mas no terceiro dia foi alvo de pressões da família. Quando muito, entrava no banheiro, molhava os cabelos e, sem fazer a barba, dava por terminado. Nem de roupa trocava. Exceção foi na véspera de partir. Ao sair do banheiro tinha o rosto lisamente escanhoado.
Aos sintomas manifestados nos dias que antecederam a sua morte acresceu-se a inapetência. Glutão, pesava mais do que convinha. Mais que a quantidade, tinha por hábito digerir sem mastigar. Temperava os alimentos com a ansiedade. E não costumava ingerir saladas. A única folha aceitável ao seu paladar era a couve. Como não fazia exercícios físicos e pouco caminhava, ficou obeso. Porém, nos últimos dias não se interessava pela comida. Apenas tomava água e leite, café para acompanhar o cigarro, e beliscava. Em poucos dias, perdeu oito quilos.
O olhar entrou em vacuidade. Fitava, catatônico, a paisagem, os objetos da casa, parentes e amigos, sem proferir palavra. Apenas sorria. Como se fotografasse com a mente cada detalhe observado. E se recolhia a um canto da casa para orar. Deus deve ter lhe prevenido que aqueles eram seus últimos dias. Levasse na memória e no coração as lembranças do que pudesse captar pelo olhar. E, como as aves do céu e os lírios do campo, já não se preocupasse com o que haveria de comer ou vestir. Despegava-se de tudo que não era a sua essência. Assim, o espírito ficou livre para transcender essa existência.
Tonico viveu despojadamente. Deixasse-o à solta, tudo distribuía: sorrisos, cigarros, presentes que recebia. E, sobretudo, ensinou-nos a amar, pois todo ele era afeto.
É um consolo saber que não conheceu o sofrimento que costuma anteceder à morte: a decrepitude da velhice, a corrosão da enfermidade, a demência, o acidente fatal, a agressão do homicida... Transcendeu adormecido. Saiu do casulo, virou borboleta...
Epifania.
Frei Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros.
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