Correio da Cidadania

O ocaso da democracia liberal

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A descoberta de que o Senado brasileiro é um antro de nepotismo, corrupção, tráfico de influências e mordomias aviltantes – embora haja senadores e funcionários éticos, de competente dedicação ao serviço público – traz à tona uma questão mais profunda: o fim de uma era política em que as instituições de poder pairavam acima de qualquer suspeita.

 

A imunidade é irmã gêmea da impunidade. Como o atual sistema democrático é meramente delegativo, eleitos desprovidos de caráter e valores morais se valem dos labirínticos canais do poder público para, em nome do povo, promover o benefício próprio.

 

Para isso lançam mão de decretos secretos, artimanhas casuísticas, nepotismo implícito, estendendo uma malha burocrática integrada por funcionários coniventes, cúmplices da desfaçatez, desprovidos de ética e amor à coisa pública por força de proventos e prebendas abusivos.

 

Nas sociedades capitalistas predominam relações desiguais de poder. Uma das características do parlamento burguês é legislar em causa própria, sobretudo no que concerne a salários, ajudas de custo, propinas e salvaguardas (auxílio-moradia, plano de saúde, transportes extensivos a familiares etc.). "Nada mais perigoso que a influência dos interesses privados nos assuntos públicos", escreveu Rousseau em O contrato social.

Eleger-se vereador, deputado ou senador torna-se, para muitos, uma ambição pessoal destituída de qualquer motivação de serviço ao bem comum. A eleição transforma-se em loteria. O premiado decola para a esfera blindada pela áurea de autoridade, isento do risco de a sociedade investigá-lo e, eventualmente, puni-lo. Este só pode ser julgado por seus pares e instâncias superiores, quase sempre marcados por complacente conivência.

 

O ocaso da democracia liberal resulta do controle social sobre o poder público. A maracutaia vem à tona graças às investigações da imprensa, de movimentos sociais e ONGs que se dedicam a vasculhar as contas públicas e tornar transparente a atuação dos políticos. Lança-se, assim, as sementes de uma nova era democrática, a da autoridade partilhada.

 

Esse exercício cidadão de aferição dos eleitos e da máquina do Estado mina, aos poucos, a escusa politicagem ancorada no coronelismo, no compadrio, nas ameaças veladas e explícitas, na extensa rede de nomeações e compensações, que vão das licitações fajutas ao salário astronômico de um mordomo. Quebram-se as redomas que envolvem o poder, desprivatiza-o, devolve-o à sua precípua finalidade: o serviço ao público.

 

Na democracia participativa a autoridade é exercida pelo cidadão e pela cidadã, a quem o político, como servidor, tem o dever de prestar contas. Toma-se a sério o conceito de democracia: o exercício do poder, não somente em nome do povo, mas pelo povo e com o povo. Através de mecanismos de aferição do desempenho dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, desvelam-se os seus atos e revelam-se os obscuros meandros que até então favoreciam as trevas encobridoras de safadezas cometidas à revelia do público e com o dinheiro do contribuinte.

 

Agora todos sabem que o rei está nu. Aos poucos, rompe-se a velha hegemonia de poder que consistia no controle da mídia, no atrelamento dos partidos a figuras caudilhescas, na criação de uma vasta rede de influências através de nomeações voltadas ao fortalecimento das bases políticas que asseguravam a uma família, grupo ou partido a perpetuação no poder.

 

Refunda-se o Estado moderno. Na América Latina e no Caribe desponta a primavera democrática que rechaça os golpes de Estado, como ora ocorre em Honduras, e veta-se o acesso ao poder de políticos submissos ao receituário neoliberal. Para horror das velhas oligarquias, muitos eleitos tiveram origem política em movimentos sociais, governam em benefício dos mais pobres e não descartam a utopia de uma sociedade pós-capitalista.

 

É verdade que nesse período de transição da democracia liberal à democracia real, participativa, sombras e luzes se mesclam, como alianças eleitorais entre setores progressistas e conservadores, no ambíguo compasso de uma no cravo e outra na ferradura. Interesses eleitoreiros se sobrepõem ao rigor ético; o uso do dinheiro público se esconde sob cartões de crédito e investimentos institucionais, como fundos de pensão, imunes à transparência; empresas privadas cooptam políticos e partidos através do financiamento de campanhas.

 

Muito além do sistema político, a democracia deve vigorar também no sistema econômico, nas esferas familiar, racial, sexual, religiosa, nas relações comunitárias e corporativas. Isso não se alcança senão através de mecanismos e instituições que obriguem o Estado a se submeter ao efetivo controle popular.

 

Frei Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros.

 

Copyright 2009 – FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

 

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Comentários   

0 #3 Leni 16-07-2009 18:38
Andar pelas ruas das periferias e ver o sofrimento do povo, o caos que se encontra o atendimento em hospitais públicos, a péssima qualidade na escola pública,falta de saneamento básico, a falta de moradias populares, a falta de esperança na mudança, e ao mesmo tempo, ter conhecimento de denuncias da Policia Federal e de Ministério Público Federal, (na Operação Boi Barrica por exemplo) que há milhões de dólares em banco na China e em alguns paraisos fiscais no Caribe é ter a certeza que a corrupção praticada há décadas pelo volume astronômico de valores desviados de cofres públicos, para o bolso (e contas bancárias)de particulares e grupos interligados, constitui-se violação de direitos humanos.
E o pior é que todos continuam tranquilos e ocupando cargos importantes!
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0 #2 Bruna 15-07-2009 08:27
Como se faz necessário uma nova forma de se fazer política, sem interesses mesquinhos, egoístas, como faz...Não existe nenhuma democracia. Como pode haver democracia, num país, num mundo onde as pessoas não tem acesso ao básico? Como pode reinar diversas opiniões diferentes, entretanto, inteligentes, no mundo onde não é dado o conhecimento, quem o tem não exerce, não repassa, de maneira ética?Como pode? Apenas podemos falar em democracia, a verdadeira, quando consciências estejam formadas, quando todos tenham tempo para estudar, quando todos tenham o direito de descansar, dignamente...
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0 #1 Tota propina será castigadaFrancisco Emílio Surian 14-07-2009 14:17
Há muito tempo admiro o trabalho de frei Beto. No momento atual, as forças se reorganizam. Pena que isso ainda não acontece em função de uma visão mais humanista e em favor do povo. Corre-se o risco de após eleito o próximo presidente, seja quem for, toda a cadeia de propinas se reorganize. É urgente um novo modelo de se fazer política. Hoje, com o nome de democracia, reproduzimos os mesmos defeitos da monarquia, violentamente rechaçada com a queda da Bastilha. Sustentamos com nossos impostos os desvios, as festas, os altos salários de pessoas que eleitas, resolveram roubar quem neles acreditou. Nenhum candidato a cargo político deveria poder ser releito mais que uma vez. Veja-se o que têm feito aqueles que transformaram o Senado em profissão...
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