Ética e política
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- Frei Betto
- 08/12/2009
A "ética" neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a visão de institucionalidade ética. Assim, reforça a atitude paralisante do moralismo, que reduz a ética a uma ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética é imprescindível para configurarmos o mundo histórico. Portanto, a ética exige uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade. Como acentua Marilena Chauí, não basta falar em ética na política. A crítica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige uma ética da política. Criar espaços de geração de novos direitos. As instituições devem garantir a toda a sociedade a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, a justiça participativa e a presença de todos – democracia – no poder que decide os rumos da sociedade.
O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista. Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação, o que o Gênesis chama de "pecado original", há que se criar uma institucionalidade político-social capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas ameaças, assim como ocorre em relação ao incesto, outrora praticado no Egito, sem faltar os exemplos bíblicos.
De onde tirar os valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos das éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha?
Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.
É concessão à lógica burguesa admitir que o Estado seja o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.
"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de um socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais, feministas e ecológicas.
Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade da esquerda são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do combate à burguesia, faz a esquerda agir mimeticamente como burguesa, ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, sonegar informações sobre recursos financeiros, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.
O pólo de referência das esquerdas, em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L. F. Veríssimo e outros, de "O desafio ético" (Garamond), entre outros livros.
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Comentários
Não é fácil escapar da lógica neoliberal. Muito do que o Frei Beto coloca como sendo alternativo na verdade é uma conquista da revolução burguesa. Isto p. ex.: "Criar espaços de geração de novos direitos. As instituições devem garantir a toda a sociedade a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, a justiça participativa e a presença de todos – democracia – no poder que decide os rumos da sociedade". Inclusive, a própria Democracia como a entendemos e queremos que seja universal é uma invenção da Revulução Liberal.
Mesmo que descolemos um pouco disto e alcancemos a justiça equitativa, que é "a cada um conforme sua necessidade" (já que falar em direito dá margem a 'fazer jus' e ter por merecimento justo), não iriamos muito longe, pois a ética cristã dá margem para entendimentos de que a salvaçao passa pela conversão pessoal e não por "institucionalidades". Inclusive Jesus passa a idéia de ter sido um tanto rebelde em relação às instituições do seu tempo, mas mais focado na auto-consciencia (particular) da Missão. Este viés do cristianismo foi bem captado pelo Liberalismo.
Falar em "direito" atualmente pressupõe - segundo a CF-88 - ter uma lei que regulamente, um contrato/acordo etc. Ex. "tenho direito ao salário porque trabalhei e a CLT me assegura tal direito". Assim, por direito, a propriedade é do seu dono e não de quem precisa dela.
Se quisermos falar de um tipo de direito porque, como ser social, temos "naturalmente" direito aos bens produzidos pela sociedade (distributiva) , nem o "socialismo real" conseguiu criar mecanismo para isto. Só há experiência disto nos "Atos dos Apóstolos" que, por sinal, durou pouco mesmo entre os primeiros cristãos e parece ser mais presente e eficiente em situação de crise/emergência ou em relações onde haja amor, p. ex., pais e filhos.
Outro problema, vejo quando ele fala: "Hoje, a luta não é de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação da riqueza a única razão de viver". E no final ele conclui que todos precisam se unir em tordo dos "direitos dos pobres". No entanto, Pobre é visto no atual modelo como "classe", então fica complicado perder a noção de classe como referência de luta, pois teremos sempre a classe pobre como contraponto à classe rica e uma esquerda no meio funcionando como "pelega" - amortizando o impacto da exploração. Para piorar, os pobres não são os criadores de si mesmos, mas reflexos de uma situação externa, assim, a grande referência é uma sombra e sua sugestão é de que então a esquerda atue na consequência do modelo, atuação portanto completamente estéril.
Tudo de bom, Frei Betto! Muita paz! Abraços,
Sandra - Viçosa - MG (Professora em cursos de pós-graduação - MBA em Gestão Pública, MBA em Gestão de Pessoas e MBA em Gestão Ambiental).
Sds do Luiz Carlos
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