Dimensão holística da ética
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- Frei Betto
- 05/06/2007
Sócrates
foi condenado à morte por heresia, como Jesus. Acusaram-no de pregar aos
jovens novos deuses. Tal iluminação não lhe abriu os olhos diante do céu, e sim
da terra. Percebeu não poder deduzir do Olimpo uma ética para os humanos.
Os deuses do Olimpo podiam explicar a origem das coisas, mas não ditar
normas de conduta.
A mitologia, repleta de exemplos nada edificantes, obrigou os gregos a
buscar na razão os princípios normativos de nossa boa convivência social.
A promiscuidade reinante no Olimpo, objeto de crença, não convinha
traduzir-se em atitudes; assim, a razão conquistou autonomia frente à
religião. Em busca de valores capazes de normatizar a convivência humana,
Sócrates apontou a nossa caixa de Pandora: a razão.
Se a moral não decorre dos deuses, então somos nós, seres racionais, que
devemos erigi-la. Em Antígona, peça de Sófocles, em nome de razões de
Estado Creonte proíbe Antígona de sepultar seu irmão Polinice. Ela se
recusa a obedecer “leis não escritas, imutáveis, que não datam de hoje
nem de ontem, que ninguém sabe quando apareceram”. É a afirmação da
consciência sobre a lei, da cidadania sobre o Estado.
Para Sócrates, a ética exige normas constantes e imutáveis. Não
pode ficar na dependência da diversidade de opiniões. Platão trouxe luzes
ensinando-nos a discernir realidade e ilusão. Em República, lembra
que para Trasímaco a ética de uma sociedade reflete os interesses de quem
ali detém o poder. Conceito retomado por Marx e aplicado à ideologia.
O que é o poder? É o direito concedido a um indivíduo ou
conquistado por um partido ou classe social de impor a sua vontade à dos
demais.
Aristóteles nos arranca do solipsismo ao associar felicidade
e política. Mais tarde, santo Tomás, inspirado em Aristóteles, nos dará
as primícias de uma ética política, priorizando o bem comum e valorizando
a soberania popular e a consciência individual como reduto indevassável.
Maquiavel, na contramão, destituirá a política de toda ética, reduzindo-a
ao mero jogo de poder, onde os fins justificam os meios.
Kant dirá que a grandeza do ser humano não reside na técnica, em
subjugar a natureza, e sim na ética, na capacidade de se autodeterminar a
partir de sua liberdade. Há em nós um senso inato do dever e não deixamos
de fazer algo por ser pecado, e sim por ser injusto. E nossa ética
individual deve se complementar pela ética social, já que não somos um rebanho de
indivíduos, mas uma sociedade que exige, à sua boa convivência, normas e
leis e, sobretudo, a cooperação de uns com os outros.
Hegel e Marx acentuarão que a nossa liberdade é sempre
condicionada, relacional, pois consiste numa construção de comunhões, com
a natureza e os nossos semelhantes. Porém, a injustiça torna alguns
dessemelhantes.
Nas águas da ética judaico-cristã, Marx ressalta a
irredutível dignidade de cada ser humano e, portanto, o direito à
igualdade de oportunidades. Em outras palavras, somos tanto mais livres
quanto mais construímos instituições que promovam a felicidade de
todos.
A filosofia moderna fará uma distinção aparentemente avançada e
que, de fato, abre novo campo de tensão ao frisar que, respeitada a lei,
cada um é dono de seu nariz. A privacidade como reino da liberdade total.
O problema desse enunciado é que desloca a ética da responsabilidade
social (cada um deve preocupar-se com todos) para os direitos individuais
(cada um que cuide de si).
Essa distinção ameaça a ética de ceder ao subjetivismo
egocêntrico. Tenho direitos, prescritos numa Declaração Universal, mas e
os deveres? Que obrigações tenho para com a sociedade em que vivo? O que
tenho a ver com o faminto, o oprimido e o excluído? Daí a importância do
conceito de cidadania. As pessoas são diferentes e, numa sociedade
desigual, tratadas segundo sua importância na escala social. Já o
cidadão, pobre ou rico, é um ser dotado de direitos invioláveis, e está
sujeito à lei como todos os demais.
O capitalismo associa liberdade ao dinheiro, ou seja, ao consumo. A
pessoa se sente livre enquanto satisfaz seus desejos de consumo e,
através da técnica e da ciência, domina a natureza. A visão analítica não
se pergunta pelo significado desse consumismo e pelo sentido desse
domínio. E, de repente, a humanidade desperta para os efeitos nefastos de
seu modo de subjugar a natureza: o aquecimento global faz soar o alarme
de um novo dilúvio que, desta vez, não virá pelas águas, e sim pelo fogo,
sem chances de uma nova Arca de Noé.
A recente consciência ecológica nos amplia a noção de ethos. A
casa é todo o Universo. Lembre-se: não falamos de Pluriverso, mas
de Universo. Há uma íntima relação entre todos os seres visíveis e
invisíveis, do macro ao micro, das partículas elementares aos vulcões.
Tudo nos diz respeito e toda a natureza possui a sua racionalidade
imanente. Segundo Teilhard de Chardin, o princípio da ética é o respeito
a todo o criado para que desperte suas potencialidades. Assim, faz
sentido falar agora da dimensão holística da ética.
O ponto de partida da ética é assinalado por Sócrates: a
polis, a cidade. A vida é sempre processo individual e social. A ótica
neoliberal diz que cada um deve se contentar com o seu mundinho. Mas fica
a pergunta de Walter Benjamin: o que dizer a milhões de vítimas de nosso
egoísmo?
Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.
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