Carta a um amigo petista
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- Frei Betto
- 15/06/2010
Meu caro: sua carta me chegou com sabor de velhos tempos, pelo correio, em envelope selado e papel sem pauta, no qual você descreve, em boa caligrafia, a confusão política que o atormenta.
Pressinto quão sofrido é para você ver o seu partido refém de velhas raposas da política brasileira, com o risco de ser definitivamente tragado, como Jonas, pela baleia... Sem a sorte de sair vivo do outro lado.
A política é a arte do improviso e do imprevisto. E como ensina Maquiavel, trafega na esfera do possível. O sábio italiano foi mais longe: eximiu a política de qualquer virtude e livrou-a de preceitos religiosos e princípios éticos. Deslocou-a do conceito tomista de promoção do bem comum para o pragmatismo que rege seus atores – a luta pelo poder.
Você deve ter visto o célebre filme "O anjo azul" (1930), que imortalizou a atriz Marlene Dietrich e foi dirigido por Joseph von Stemberg e baseado no livro de Heinrich Mann, irmão de Thomas Mann. É a história de uma louca paixão, a do severo professor Unrat (Emil Jannings) por Lola-Lola, dançarina de cabaré. Ele tanta aspira ao amor dela, que acaba por submeter-se às mais ridículas e degradantes situações. Torna-se o bobo da corte. Nem a cortesã o respeita. Então, cai em si e procura voltar a ser o que já não é. Em vão.
Me pergunto se o PT voltará, algum dia, a ser fiel a seus princípios e documentos de origem. Hoje, ele luta por governabilidade ou empregabilidade de seus correligionários? É movido pela ânsia de construir um novo Brasil ou pelo projeto de poder? Como o professor de "O anjo azul", a paixão pelo poder não teria lhe turvado a visão?
Você se pergunta em sua carta "onde o socialismo apregoado nos primórdios do PT? Onde os núcleos de base que o legitimavam como autorizado porta-voz dos pobres? Onde o orgulho de não contar, entre seus quadros, com ninguém suspeito de corrupção, maracutaias ou nepotismo?".
Nunca fui filiado a nenhum partido, como você bem sabe e muitos ignoram. É verdade que ajudei a construir o PT, mobilizei Brasil afora as Comunidades Eclesiais de Base e a Pastoral Operária, participei de seus cursos de formação no Instituto Cajamar e de seus anteparos, como a Anampos e o Movimento Fé e Política.
Prefeitos e governadores eleitos pelo PT me acenaram com convites para ocupar cargos voltados às políticas sociais. Tapei os ouvidos ao canto das sereias. Até que Lula, eleito presidente, me convocou para o Fome Zero. Aceitei por se destinar aos mais pobres entre os pobres: os famintos.
O governo que criou o Fome Zero decidiu por sua morte prematura e deu lugar ao Bolsa Família. Trocou-se um programa emancipatório por outro compensatório. Peguei o meu boné e voltei a ser um feliz ING, Indivíduo Não Governamental. Tudo isso narrei em detalhes em dois livros da editora Rocco, "A mosca azul" e "Calendário do Poder".
Amigo, não o aconselho a deixar o PT. Não se muda um país vivendo fora dele. O mesmo vale para igreja ou partido. Há no PT muitos militantes íntegros, fiéis a seus princípios fundadores e dispostos a lutar por uma nova hegemonia na direção do partido.
Ainda que você não engula essas alianças que qualifica de "espúrias", sugiro que prossiga no partido e vote em seus candidatos ou nos candidatos da coligação. Mas exija deles compromissos públicos. Lute, expresse sua opinião, faça o seu protesto, revele sua indignação. Não se sujeite à condição de vaca de presépio ou peça de rebanho.
Se sua consciência o exigir, se insiste, como diz, em preservar sua "coerência ideológica", então busque outro caminho. Nenhum ser humano deve trair a si próprio. Quando o faz, perde o respeito a si mesmo, como o professor de "O anjo azul". Mas lembre-se de que uma esquerda fragmentada só favorece o fortalecimento da direita.
A história não tem donos. Muito menos os processos libertadores. Tem, sim, protagonistas que não se deixam seduzir pelas benesses do inimigo, cooptar por mordomias, corromper-se por dinheiro ou função. Nunca confunda alianças táticas com as estratégicas. Ajude o PT a recuperar sua credibilidade ética e a voltar a ser expressão política dos movimentos sociais que congregam os mais pobres e as bandeiras que exigem reformas estruturais no Brasil.
Lembre-se: para fazer a omelete é preciso quebrar os ovos. Mas não se exige sujar as mãos.
Frei Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – twitter - @freibetto
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Comentários
Ele diz que foi pro governo defender os mais pobres entre os pobres: os famintos.
O Bolsa Família deu comida aos famintos que votam no Lula por gratidão.
Uma revolução não se faz com famintos mas com revolucionários. Que podem até vir dos famintos. Essa opção pelos pobres da igreja católica é uma forma de mantê-los pobres, se possível com alguma madre tereza conseguindo vestes e um pouco de comida para que não morram de fome.
Frei Beto, apesar de muito inteligente, faz parte desse grupo.
UMA VEZ EU DISSE AQUI QUE QUANDO O FREI BETO FOI PRO GOVERNO, O PT JÁ TINHA MUDADO HÁ MUITO TEMPO. ELE FEZ QUESTÃO DE NÃO VER.
Ou ignorou para fazer um discurso falso moralista do resgate do Pt das origens.
A igreja católica, particularmente, padres e religiosos como Frei Beto, foram muito importantes no combate a ditadura militar.
Agradeço a muitos deles por terem nos ajudado.
Mas, hoje são outros tempos e os companheiros de ontem são inimigos ferozes hoje. Só não enxerga quem não quer.
O Pt jamais será o que foi. ou seja, uma enorme base eclesial da igreja. Hoje o Pt é poder junto com a burguesia.
O Frei aconselha o amigo a ficar no PT, ao mesmo tempo em que foge do governo petista como o diabo da cruz.
Os conselhos contraditórios sugerem que o governo lulista perdeu-se enquanto o PT continua sendo portador de mudanças históricas - "não o aconselho a deixar o PT. Não se muda um país vivendo fora dele.".
Será, Frei Beto?
Isso depende de que país estamos falando. Se for o país que precisa da (re)distribuição da terra e da renda, só pra ficar nisso, então o PT deixou de ser o partido dos trabalhadores brasileiros, para se tornar o partido dos banqueiros e do agronegócio.
Frei Beto sabe disso, e tenta, desesperadamente, encontrar esperanças que há muito o PT jogou na lata de lixo da história.
Verdade que há ainda gente ética no PT, mas são poucos, e não pesam mais nas decisões partidárias.
O PT segue exatamente a mesma linha histórica dos partidos sociais-democratas europeus (guardadas as devidas proporções).
Dominado de ponta a ponta por uma burucracia sindical e estatal, que não hesita em rifar a classe trabalhadora para manter seus privilégios, o PT cumpre o destino social-democrata apontado por Marx: o de gerente da burguesia.
Talvez um dos maiores crimes cometidos pelo PT seja exatamente o que levou ao luto ainda não superado pelo Frei: o assasinato da esperança.
O PT que o Frei viu nascer, e que muitos de nós ajudamos a construir, está morto.
É tempo do Frei e de outros lutadores colocarem fim ao luto e construirem uma nova alternativa, que passa muito longe do PT e de tudo em que se faz presente.
As mudanças que os trabalhadores precisam fazer para construir uma sociedade fraterna, justa e igualitária terão de ser feitas contra o PT.
Mesmo quando grupos abdicam das nossas bandeiras vermelhas, das estrelas e principalmente da ética e do socialismo. Ainda há esperança, como naquela charge histórica de Henfil.
Sou ateu, mas se deus existir ele possui um emissário de fé, amor e esperança: Frei Betto.
Muito obrigado pelo artigo, me encontrei nele, assim como outros milhares no Brasil inteiro.
Um forte abraço.
Frei Betto também erra ao dizer que vote nos candidados do partido, ou nas suas coligações.....
Como ex-petista, me orgulho de não fazer parte desta quadrilha e, meu voto para o PT, nunca mais.
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