O Governo Lula
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- Frei Betto
- 22/12/2010
Anunciada a vitória de Lula nas eleições de 2002, publiquei em O GLOBO (28/10/2002) o artigo ‘O amigo Lula’. Encerrei-o com a frase: "Sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro, Lula é, agora, um vitorioso".
Apoiado por ampla maioria da opinião pública brasileira (hoje, 87%), Lula governa o país há oito anos. Surpreendeu a aliados e opositores. Lula é, também agora, um vitorioso – posso parafrasear-me.
Vivi sempre de meu trabalho, como recomenda o apóstolo Paulo. Por breves períodos mantive vínculo empregatício com a iniciativa privada. Recusei nomeações do poder público. Por considerar compatível com minha atividade pastoral, aceitei convite do presidente Lula para integrar, em 2003, sua assessoria especial no gabinete de Mobilização Social do Programa Fome Zero, ao lado de Oded Grajew.
Ali permaneci dois anos. Tive oportunidade de implantar dois programas de ampla capilaridade nacional e ainda vigentes: a Rede de Educação Popular, que atua segundo o método Paulo Freire na formação cidadã de beneficiários do Bolsa Família; e o Escolas Irmãs, que estabelece conexões solidárias entre professores e alunos de instituições de ensino.
Minha tarefa principal consistia em mobilizar a sociedade civil em prol do Fome Zero, sobretudo os Comitês Gestores que, eleitos democraticamente nos municípios, cuidavam do cadastro dos beneficiários e supervisionavam o cumprimento das condicionalidades do programa de erradicação da miséria.
Muitos prefeitos reagiram. Queriam a si o controle do Fome Zero. Temiam o despontar de novas lideranças locais via Comitês Gestores. Exigiam decidir, por razões eleitoreiras óbvias, quem entra e sai do cadastro. Por sua vez, o lobby do latifúndio – cerca de 200 parlamentares do Congresso – pressionava para o Fome Zero não efetivar a reforma agrária, que lhe asseguraria caráter emancipatório e constituía cláusula pétrea do programa do PT.
A Casa Civil deu ouvidos aos insatisfeitos. Tratou de substituir o Fome Zero por um programa de caráter compensatório e, até hoje, sem porta de saída, cujo cadastro é controlado pelos prefeitos: o Bolsa Família. Oded Grajew regressou a São Paulo, o ministro Graziano foi substituído e eu, em dezembro de 2004, pedi demissão. Voltei a ser um feliz ING – Indivíduo Não Governamental.
Às vésperas de encerrar o governo Lula, avalio-o como o mais positivo de nossa história republicana. O Brasil mudou para melhor.
Entre 2001 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes mais que a dos 10% mais ricos. A dos ricos cresceu 11,2%; a dos pobres, 72%. No entanto, há 25 anos, de acordo com o IPEA, metade da renda total do Brasil permanece em mãos dos 10% mais ricos. E os 50% mais pobres dividem entre si apenas 10% da riqueza nacional.
Sob o governo Lula, os mais pobres mereceram recursos anuais de R$ 30 bilhões; os mais ricos, através do mercado financeiro, foram agraciados, no mesmo período, com mais de R$ 300 bilhões, o que impediu a redução da desigualdade social.
Faltou ao governo diminuir o contraste social por meio da reforma agrária, da multiplicação dos mecanismos de transferência de renda e da redução da carga tributária nas esferas do trabalho e do consumo. E onerar as do capital e da especulação.
Hoje, os programas de transferência de renda do governo representam 20% do total da renda das famílias brasileiras. Em 2008, 18,7 milhões de pessoas viviam com menos de ¼ do salário mínimo. Não fossem as políticas de transferência, seriam hoje 40,5 milhões. Isso significa que o governo Lula tirou da miséria 21,8 milhões de pessoas.
É falácia alardear que, ao promover transferência de renda, o governo "sustenta vagabundos". Isso ocorre quando não pune corruptos, nepotistas, licitações fajutas, malversação de dinheiro público. No entanto, a Polícia Federal prendeu, por corrupção, dois governadores.
Mais da metade da população do Brasil detém menos de 3% das propriedades rurais. E apenas 46 mil proprietários são donos de metade das terras. Nossa estrutura fundiária é idêntica à do Brasil império! E o empregador rural não é o latifúndio nem o agronegócio, é a agricultura familiar: ocupa apenas 24% das terras e emprega 75% dos trabalhadores rurais.
A inflação manteve-se abaixo de 5%, cerca de 11,7 milhões de empregos formais foram criados e o salário mínimo corresponde, hoje, a mais de US$ 200. Isso permitiu ao consumidor planejar melhor suas compras, facilitado por uma política de créditos consignados e a longo prazo, malgrado as elevadas taxas de juros.
O governo Lula não criminalizou movimentos sociais; buscou o diálogo, ainda que timidamente, com lideranças populares; melhorou as condições dos quilombos; demarcou terras indígenas como Raposa Serra do Sol.
Ao rechaçar a ALCA e zerar as dívidas com o FMI, Lula afirmou o Brasil como país soberano e independente. O que lhe permitiu manter confortável distância da Casa Branca e se aproximar da África, dos países árabes e da Ásia, a ponto de enfraquecer o G8 e fortalecer o G20, do qual participam países em desenvolvimento. Estreitou relações com a África do Sul, a Índia e a China, valorizou a UNASUL e rompeu o "eixo do mal" de Bush ao defender a autodeterminação de Cuba, Venezuela e Irã.
O governo termina sem que, nos oito anos de mandato, tenham sido abertos os arquivos das Forças Armadas sobre os anos de chumbo, nem apoiado iniciativas para entregar à Justiça os responsáveis pelos crimes da ditadura. O país continua sem qualquer reforma estrutural, como a agrária, a política, a tributária etc.
Na educação, o investimento não superou 5% do PIB, quando a Constituição exige ao menos 8%. Embora o acesso ao ensino fundamental tenha se universalizado, o Brasil se compara, no IDH da ONU, ao Zimbábue em matéria de qualidade na educação. Os professores são mal remunerados, as escolas não dispõem de recursos eletrônicos, a evasão escolar é acentuada. Os programas de alfabetização de adultos fracassaram e o MEC se mostrou desastrado na aplicação do ENEM. De positivo, a ampliação das escolas técnicas e das universidades públicas, o sistema de cotas e o ProUni.
O SUS continua deficiente, enquanto o atendimento de saúde é progressivamente privatizado. Hoje, 44 milhões de brasileiros estão inscritos em planos de saúde da iniciativa privada. Mais de 50% dos domicílios do país não possuem saneamento, os alimentos transgênicos são vendidos sem advertência ao consumidor, os direitos das pessoas portadoras de deficiências não são devidamente assegurados.
Governar é a arte do possível. Implica imprevistos e exige improvisos. Lula soube fazê-lo com maestria. Espero que o governo Dilma possa aprimorar os avanços da administração que finda e corrigir-lhe as falhas, sobretudo na disposição de efetuar reformas estruturais e ampliar o rigor na preservação ambiental. Tomara que a presidente consiga superar a deficiência congênita de sua gestão: o matrimônio, por conveniência eleitoral, entre o PT e o PMDB.
PS: O poder não muda ninguém, faz com que as pessoas se revelem.
Frei Betto é escritor, autor de "A mosca azul" e "Calendário do poder" (Rocco), entre outros livros.
Página e twitter do autor: http://www.freibetto.org/ - twitter:@freibetto
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Comentários
Trocamos uma dívida externa com o FMI por uma dívida interna monstruosa.
Compramos dólares e depois recuperamos os reais com títulos que hoje somam quase 2 tri para alegria dos banqueiros.
Utilizamos o BNDES da forma mais leviana possível, financiando projetos irrealizáveis no sertão nordestino.
Maquiamos a educação e a saúde para sair bem no IDH e continuamos lá nas alturas.
Elegemos palhaços, jogadores e artistas para nos representar, porque a política tornou-se uma comédia com direito a dança da pizza, malas e cuecas.
Até zelador de zoológico ficou milionário.
87% de aprovação é piada de fazer chorar de pena da gente deste país.
Portanto, não me surpreende esta postura de Frei Beto, diametralmente oposta a tudo o que pregava e ficou famoso por isso.
O seu discurso neste artigo, assim como no passado publicado aqui no Correio (felizmente salvo pelo copyright capitalista e anticultural do Frei), Frei Beto reproduz "ipisis literi" o discurso oficial, que foi gestado lá fora, que inclui a entrega do país e suas riquezas e a transferência de no mínimo R$300 Bi (fora o Pré Sal) anuais para os ricos(não há um só indice oficial que me aponte o contrário e o superávite primário), com a concessão de 10 vezes MENOS que isso para as áreas sociais, com toda a militarização e aparatos de segurança interna reavivado sob o lema "combate ao crime organizado", que já sabemos muito bem que é o discurso preparado pelo Plano Colômbia, e já anunciado pelo ministro jobin, a partir da ameaça direta que fez aos aeroviários em greve.
Frei Beto, aperece finalmente com esta sua nova (velha?) fachada totalmente assumida, deixando de lado até o Frei Beto que saiu do governo Lulla, "por não poder compactuar com certas coisas", para vermos a profundidade desta metamorfose operada nele.
Frei Beto acaba de se transformar em "case" de livro. Refiro-me ao excelente Ensaios contra a Ordem, de James Petras, onde ele descreve com maestria os mecanismos de cooptação da "inteligência" de um país,. para o projeto da Globalização Neo Liberal. Frei Beto está lá, mesmo sem ser citado, pois faz parte de um extrato muito estudado pelo sociólogo autoer do livro e mebro do Tribunal Russel para a América Latina.
Na minha humilde opinião de leigo em assuntos religiosos, intuo que Frei Beto devia pensar menos em Deus e mais no significado da vida de Jesus Cristo, sob os olhos daqueles que lutam pela libertação da humanidade o ódio e da opressão.
Creio que a insistência acintosa de escrever artigos como este e o último aqui publicado, o equipara a meros provocadores da política, que tão tristes lembranças (e marcas) temos.
Feliz Natal, Frei Beto! Que seja pleno de verdadeiras reflexões. Sugiro que penses no absurdo que é uma Borboleta virar Lagarta.
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