Eduardo III e a senatorial república
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- Frei Betto
- 12/07/2007
Não se sabe se Shakespeare é
autor de Eduardo III, peça que figura entre seus textos
apócrifos. Os críticos ao menos estão de acordo
que teria ele contribuído para os dois primeiros atos. A peça
aborda um tema perene: governantes governam governos e, no entanto,
quase nunca sabem se governar.
O que ocorre a eles bem
sabemos, mudam os tempos, diferem os costumes: enredam-se em rabos de
saia, nomeiam juízes e jurados do próprio julgamento,
compram uma novilha para entrar na maracutaia e vendem a boiada para
não sair dela.
Foi o rei Eduardo III (1312-1377) quem
criou a Ordem da Jarreteira, a mais antiga e importante comenda
britânica, concedida aos que se destacam pela lealdade à
coroa. Jarreteira é uma liga azul de prender meias. O criador
da Ordem de tão curioso nome casou-se aos 14 anos com a belga
Phillippa, que lhe deu 13 filhos. Mais tarde, apaixonou-se por Joan,
condessa de Salisbury, que insistiu em manter-se fiel a seu segundo
marido, malgrado o assédio real.
Durante um banquete
em Calais, em comemoração à posse inglesa da
cidade francesa, o rei tirou a condessa para dançar, sob os
olhares perplexos da rainha Phillippa e da corte. Súbito, uma
das meias de Joan se desatou e desceu ao pé. O rei, sem o
menor constrangimento, apanhou a liga azul e a amarrou debaixo de seu
joelho esquerdo. Frente ao murmúrio provocado por tão
ousado gesto, Eduardo III pronunciou a frase que se tornaria o lema
da Ordem da Jarreteira: Honit soit quit mal y pense (Maldito seja
quem pensar mal).
Vivesse em nossa época, Shakespeare
teria à sua disposição vasto material, menos
nobre, é verdade, descoroado, pois não convém
comparar Eduardo III com a farsa do senatorial Conselho de
Ética.
Feita de barro e sopro, a natureza humana é
sempre a mesma. Sendo o sopro de natureza divina, invisível e
volátil, como todos os dons que dependem de nossa liberdade de
acolhê-los e cultivá-los, fica o barro como o atoleiro
no qual metemos as mãos, os pés e a alma. Amolecido
pelo dinheiro da corrupção, torna-se ainda mais
maleável. O corrompido não passa de argila fresca em
mãos do corruptor.
Na peça, ao advertir a filha
acerca da corrupção no poder, um nobre se expressa num
estilo que traz a marca registrada de Shakespeare: “(...) o veneno
mostra-se pior numa taça de ouro; a noite escura parece mais
escura ao clarão do relâmpago; os lírios que
apodrecem fedem muito mais que ervas daninhas.”
Nós,
brasileiros, já não vivemos numa monarquia, malgrado a
pose majestática de alguns de nossos políticos. E nossa
República cheira a republiqueta. Em matéria de
corrupção distamos, e muito, da taça de ouro, do
clarão do relâmpago e dos lírios. Restam-nos as
ervas daninhas: bingos, caça-níqueis, novilhas e bois.
Nossa podridão fede no curral. Chafurdamos na indignação
como espectadores de uma tragédia democrática. Quando a
platéia subirá ao palco?
Darcy Ribeiro
gabava-se, em suas palestras, do direito de plagiar a si mesmo. Todos
que falam em público sabem como é impossível ser
original a cada vez que se abre a boca. A prova mais contundente de
que Shakespeare enfiou sua colher de pau na cozinha de Eduardo III
reside no fato de ele repetir literalmente, em seu Soneto 94, a frase
“os lírios que apodrecem fedem muito mais que ervas
daninhas” (Lilies that fester smell far worse than weeds).
Aliás,
em matéria de plágio nossa senatorial maracutaia não
fica atrás, noves fora o talento. De curral a curral, a
pecuária soa a pecuniária. Dinheiro vivo na boca do
caixa, mais ignóbil que uma taça de ouro, ou entregue
pelo lobista na porta de casa, sem um ramo de lírio.
A
vida extrapola a ficção. Mas quando a repulsa paralisa
a platéia, a impunidade campeia. De cima do palco eles se
abrigam na escuridão, protegidos pelo manto da imunidade,
posando de vítimas ao relampejar dos holofotes da mídia.
Aqui embaixo somos envenenados pelo cheiro da podridão.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário
do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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