Por que Cuba ainda incomoda tanto?
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- Renato Nucci Jr.
- 30/11/2016
Sempre é importante lembrar que Cuba não é um paraíso terrestre. É necessário superar as ilusões mágicas, muito comuns mesmo entre militantes de esquerda, de que haveria um país na face da Terra que se assemelhe a um Éden farto em leite e mel. Por outro lado, Cuba não é o inferno terreno, como faz a direita ultrarreacionária e mesmo algumas organizações de esquerda. Se há um inferno na Terra, atualmente, este se encontra na Síria, na Palestina, na Líbia, no Afeganistão, todos devastados por guerras patrocinadas pelo imperialismo. O inferno está no sofrimento dos povos africanos, vítimas de um colonialismo que saqueou suas riquezas e cometeu genocídios, cujas consequências nefastas sobrevivem até hoje. O inferno está disseminado pela América Latina, vítima de uma estrutura oligárquica que a faz ostentar o título inglório de região mais desigual do mundo.
O país caribenho tem inúmeras dificuldades? Sim, tem. O processo revolucionário vive contradições? Sim, vive. E os cubanos são os primeiros a reconhecerem-nas. Porém, não defendem a destruição daquilo que o processo revolucionário trouxe como conquistas. Não desejam que seu país volte a ser um parque de diversão dos norte-americanos endinheirados, como era antes da Revolução. Essa ousadia, inadmissível para o imperialismo, faz Cuba sofrer desde o começo da vitória revolucionária com calúnias e ataques sem fim. Além de ameaças de invasão e de um criminoso bloqueio econômico que mesmo impondo enormes dificuldades ao país, não foi capaz de dobrar a vontade do seu povo.
Por todos esses motivos as elites oligárquicas da América Latina, apoiadas em parcelas reacionárias das nossas camadas médias, odeiam e detratam tanto a Revolução Cubana. As calúnias dirigidas a Cuba por essa gente está acima de tudo no profundo significado da Revolução, definido por Fidel, em 1961, com as seguintes palavras: “esta é a revolução socialista e democrática dos humildes, com os humildes e para os humildes”. No caso brasileiro, Cuba assombra o nosso mundo burguês, assim como a revolta dos negros escravizados no Haiti, no começo do século 19 fez a elite escravista de nosso país ter pesadelos de que o mesmo poderia acontecer por aqui. Imagina se essa moda de o povo exigir direitos, conquistas sociais e igualdade efetiva e não formal se espalhar pelo Brasil?
É por isso que aqueles que têm medo de perder seus privilégios atacam a Revolução Cubana. Por isso, também, criam uma estratégia de provocar entre os povos do mundo um sentimento de descrédito para com Cuba, através de uma absurda amplificação de todos os seus problemas. Qualquer minúscula dificuldade porque passa a Ilha é logo apresentada como evidência do fracasso do processo revolucionário. Por medo do exemplo cubano, tudo serve e tudo vale para ocultar ou relativizar as conquistas da Revolução. Acusam injustamente Cuba de não ser um país democrático. Mas se esquece convenientemente de que no Brasil as eleições são uma farsa e que somos governados por quadrilhas político-empresariais que assaltam os cofres públicos.
Acusam injustamente Cuba de não permitir protestos e manifestações contra o governo. Mas se esquecem de como no Brasil mobilizações populares sempre foram duramente reprimidas e criminalizadas. Acusam injustamente Cuba de viver em constante racionamento de energia. Mas se esquecem de como no Brasil democrático e capitalista sofremos recentemente com apagões de energia e até a água secou das torneiras, em um país que tem a maior reserva hídrica do mundo, por inépcia dos governos em contornar o problema. Acusam injustamente Cuba de ser um país pobre. Mas se esquecem de como cerca de 50 milhões de brasileiros só não vivem na miséria extrema e na fome porque contam com ajuda governamental.
O processo revolucionário cubano não é perfeito. Vive imerso em defeitos e contradições como tudo nesse mundo. Contradições aguçadas por um dos períodos históricos dos mais contrarrevolucionários que conhecemos, fazendo com que o capitalismo, mesmo em crise, torne-se ainda mais violento e agressivo. Temos, os comunistas e socialistas combativos, o dever de sermos os primeiros a dizer que Cuba não é um país perfeito. Mas, considerando o contexto latino-americano, foi a nação que por causa exclusivamente de sua revolução conseguiu mais avançar em conquistas sociais e em dignidade para seu povo. Os dados são abundantes e reconhecidos até mesmo por organismos insuspeitos de simpatia para com a Revolução, como o Banco Mundial, obrigado a admitir como o sistema de ensino de Cuba é o melhor da região. Isso sem contar as conquistas na saúde, no esporte e na cultura.
O exemplo cubano também incomoda por seu caráter internacionalista. Cuba foi o país latino-americano que mais prestou solidariedade, inclusive armada, aos movimentos político-sociais que lutaram em nosso continente para derrubar em diversos países estruturas desiguais e injustas. Mesmo após a desagregação da União Soviética, crianças ucranianas vítimas do desastre nuclear de Chernobyl continuaram sendo acolhidas por Cuba para receberem tratamento médico. Quando um violento terremoto matou de 100 mil a 200 mil pessoas no Haiti, em 2010, centenas de médicos cubanos desembarcaram poucas horas depois no país para prestarem os primeiros socorros às vítimas da catástrofe, enquanto os Estados Unidos enviavam tropas. E foi Cuba quem prestou auxílio militar importante a Angola quando a independência do país africano estava sob grave ameaça por causa da invasão de seu território pelas tropas racistas da África do Sul. A derrota das tropas sul-africanas na batalha de Cuito Cuanavale, em 1987, por uma ação articulada entre as forças armadas cubanas e angolanas, não apenas abriu passagem para a independência da Namíbia como contribuiu, no contexto da época, para a posterior democratização da África do Sul e a libertação de Nelson Mandela.
Por tudo isso o exemplo cubano atemoriza nossas classes dominantes e faz os reformistas de esquerda e de direita odiarem-no. Cuba demonstra que as contradições de nossa formação social não se resolverão com reforminhas meia boca ou com mera distribuição de migalhas via políticas assistenciais. Os processos de mudança social em nosso continente, por causa de um capitalismo cuja condição estrutural é a de se manter subordinado ao imperialismo, não nos deixa escolhas: ou serão socialistas ou sucumbirão. Ou promoverão o igualitarismo ou manterão nossas desigualdades seculares.
Fidel advertira alguns dias após a conquista do poder em 1959, que “não nos enganemos acreditando que daqui por diante será fácil. Quiçá daqui por diante tudo será mais difícil”. E como realmente foi difícil. Naquele momento os problemas de Cuba estavam só começando e seriam ainda maiores. Por quê? Porque construir uma nação superando as contradições específicas de sua formação social e, ao mesmo tempo, preparar as condições materiais e político-ideológicas para a construção da sociedade comunista, ambas constituindo o verdadeiro significado do socialismo como momento transitório, é de uma grandiosidade sem paralelo. Ainda mais para um povo vivendo em uma pequena ilha com poucos recursos naturais, acossado permanentemente pelo maior império econômico-político-militar que a história conheceu.
Mas os cubanos tiveram a coragem e a ousadia históricas de assumir essa tarefa titânica. E aqui reside a dimensão histórica de Fidel Castro. Ele não representou um papel histórico singular apenas por suas qualidades. Sua dimensão histórica inigualável é proporcional ao desafio lançado por ele e pelos revolucionários que tomaram o poder em 1959, mas que foi assumido integralmente pelo povo cubano em construir uma nação soberana, igualitária e que não se curvasse mais aos caprichos do império norte-americano. Por isso a revolução cubana, mesmo após cinquenta anos de embargo imposto pelos EUA e agravado com o fim da URSS, não se rendeu e se manteve em pé. Fidel é grandioso porque a epopéia da Revolução Cubana se mostrou grandiosa.
E quanto a nós, brasileiros, vivendo em um dos maiores países do planeta, dotado de recursos naturais e humanos que parecem infindos? Aceitaremos resignadamente viver em uma das sociedades mais desiguais e violentas do mundo, em que 1% da população concentra metade da renda e da riqueza? Ou teremos, como o povo cubano, coragem e dignidade de romper com as cadeias que nos subjugam e fazem aceitar viver na ignorância e de migalhas? Continuaremos achando que esse cenário de desigualdade será mudado sem que toquemos nos interesses das elites dominantes? Achamos, mesmo, que seremos um país “desenvolvido” tergiversando sobre nossos reais problemas e acreditando piamente que será possível acabar com a desigualdade e as injustiças sem atacar os interesses dos ricos?
Manteremos as ilusões de que é possível conciliar interesses inconciliáveis? Todos reconhecem estar o Brasil, atualmente, enfrentando uma grave crise. Engana-se, porém, quem pensa estarmos sofrendo os efeitos de uma crise econômica ou política. Suas causas refletem a condensação de contradições profundas e estruturais que nos forjaram enquanto nação e que nos dias de hoje tem nos exigido fazer duas escolhas: ou as solucionamos revolucionariamente ou elas poderão nos levar a uma completa desagregação que nos inviabilize historicamente.
O tempo histórico está nos cobrando uma posição. E continuamos fugindo desse dilema, muitos por desconhecimento e outros tantos por interesses, pois não querem perder seus pequenos ou grandes privilégios adquiridos por anos de exploração e de opressão do povo. A história é implacável. E o tempo para conseguirmos reverter esse cenário está se encurtando cada dia mais.
Cuba tratou de resolver suas contradições, mesmo tendo de pagar um preço altíssimo por sua escolha. E quanto a nós? Continuaremos deitados em berço esplêndido?
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