Violência e agressão
- Detalhes
- Frei Betto
- 20/08/2007
Friedrick Hacker (1914-1989), psiquiatra usamericano, analisou com
propriedade as raízes da violência que impera neste mundo
globocolonizado que se ajoelha reverente ao deus Mercado. A
agressividade é própria da natureza animal, incluída a espécie humana.
Denota o nosso espírito de sobrevivência. Frente a determinadas
circunstâncias, cada um é agressivo a seu modo: ironia, humor, astúcia
desprezo, presunção etc. Violência é quando se rompe a barreira da
alteridade e a força física se impõe sobre o mais frágil ou indefeso e
como reação ao agressor.
Quase nunca entendemos como violenta a ação que atinge o outro, exceto
quando nós somos as vítimas. Se a polícia cerca, na saída de um cinema,
nosso grupo de amigos, e exige que fiquemos todos de mãos na parede e
pernas abertas, enquanto nos revista, consideraremos uma violência. Se
do alto da janela do apartamento vemos a mesma cena, com a diferença de
que os detidos são jovens de periferia, admitimos que a polícia cumpre
o seu dever. Sentimos mesmo certo alívio por saber-nos protegidos pelo
Estado que, sustentado por nossos impostos, nos oferece segurança.
Se um dos amigos protesta pelo modo como está sendo apalpado e recebe
em resposta um empurrão, fica patente a violência. Para o policial em
nenhum momento houve violência. Julga apenas que cumpre o seu dever. É
o caso do pai que, ao retornar do trabalho, descobre que o filho mais
velho bateu no mais novo. Para dar-lhe uma lição de que nunca deve
bater em alguém mais fraco do que ele, o pai dá uma surra no mais
velho. Sem nenhuma consciência de que pratica exatamente o que
recriminou. É essa contradição entre o discurso sobre a educação e os
métodos aplicados que dissemina o comportamento violento.
Por que o mesmo ato cometido por um é repreensível e, por outro é,
legítimo? Esse pai jamais se considerará violento. Se questionado, dirá
apenas que é seu dever educar.
Esta a estrutura em que a violência se apóia: é sempre praticada, como
se fosse ato de justiça, legitimada por uma razão superior, seja o Deus
dos cruzados ou dos fundamentalistas; a defesa da propriedade privada;
o liberalismo do Mercado; os deveres de uma boa educação etc.
A violência é a mais primária forma de manifestação da agressão. Toda a
estrutura da sociedade, com suas leis e instituições, contém boa dose
de agressividade, assim como a disciplina que os pais impõem à boa
educação dos filhos. Ela favorece a nossa convivência social e reprime
nossas tendências auto-destrutivas. O melhor exemplo de agressividade
sem violência é o esporte.
Já a violência é rasteira, cruel, repetitiva, o que permite à polícia
identificar o modus operandi de criminosos, pois ela se propaga sem a
menor criatividade, exceto os equipamentos bélicos concebidos para
torná-la mais e mais brutal e massiva. Para saber lidar com a
agressividade é preciso certo refinamento de espírito. Já a violência é
burra, não exige educação, está ao alcance de qualquer um.
O mais grave é que nos acostumamos à prática da violência. Covardes,
não ousamos usar as próprias mãos, mas aplaudimos quando a polícia
espanca o bandido; a lei retroage a idade penal; o plebiscito libera o
comércio de armas; o Estado decreta a pena de morte etc. Sem nos dar
conta de que nos deixamos dominar pela parte mais primária de nosso
cérebro, lá onde se aloja o réptil que nos precede na escala evolutiva
e do qual somos tributários.
Se uma sociedade perde a sensibilidade à violência e ignora o limite
que deve perdurar entre ela e a agressividade, isso aquece o caldo de
cultura do autoritarismo. O sentimento de humilhação que a Primeira
Guerra impôs ao povo alemão favoreceu a ascensão do “vingativo” Hitler.
A derrota de Bush pai no Iraque, em 1991, impeliu boa parte da opinião
pública dos EUA a apoiar, em 2003, o filho disposto a “lavar a honra”.
Ninguém é capaz de atacar seu semelhante, a menos que produza, entre si
e o outro, a dessemelhança. Assim, o homem bate na mulher por
considerá-la imbecil; o branco agride o negro por encará-lo como
inferior; a grande nação decreta guerra à pequena que se nega a abrir
mão de sua soberania; o líder popular passa a ser demonizado pela
mídia, de modo a deslegitimar a causa que defende. Essa postura
distancia, desculpabiliza, abre caminho à violência como legítima e até
legal.
Não convém erradicar a agressividade própria do humano e que nos impele
a alcançar metas e conquistas. O desafio é fazer a distinção ensinada
por Hacker e criar uma cultura baseada no mais primordial paradigma da
alteridade, que tem a sua origem Naquele que, radicalmente diferente de
nós, nos criou à sua imagem e semelhança.
Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.
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