Memórias de Alice
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- Frei Betto
- 24/09/2007
Se me é dado recordar,
puxo lá no fundo da memória. Só deslembranças mais profundas, as que se
refugiam atrás do inconsciente, carregadas de dor, revestidas de traumas, que
preferem se esconder nos recantos mais obscuros do olvido. Porque outras eu sei
guardar na lembrança. São as que permanecem tatuadas no coração, enraizadas no
cipoal de sentimentos, impregnadas na superfície da pele.
Já viu, Alice, alguém esquecer o calor das mãos amadas, o beijo afetuoso, o
olhar acolhedor, o sorriso de alvíssaras? Rodam-me a gargalhada do avô, ouvir a
piada contada pelo tio, observando a espuma subir no copo enquanto a cerveja
descia; o cheiro apetitoso da quitanda de seu Nezinho, florida de verduras e
colorida de legumes; o silvo agudo da roda pétrea do amolador de facas se anunciando
na esquina.
Também jamais se me apagam as lembranças da infância, não todas, mas sim
aquelas que me fizeram dar conta de mim, saber que eu sou eu, fatos, episódios,
eventos que me serviram de espelho no qual refleti essa personalidade moldada
no tecido cotidiano da vida. Porque a gente não nasce sabendo de si. Nasce
exilado de si. A sabença vem aos poucos, vem pelo olhar do outro, vem pelo
carinho acalentador, e também pelo golpe desferido na face, o horror, o grito
ofensivo, a ferida aberta na alma pela ponta da maledicência.
Quando a linha invisível do espaço que nos cerca é feita de bem-querer, o nosso
lado de dentro também se faz de generosidade. Mas quando são fios eletrizados a
nos causar permanente tensão, somos impelidos a romper a linha, destroçá-la, na
ânsia de liberdade ilimitada. Reside aí a fonte maligna de todas as guerras.
Quem nasce tropeçado tende a atropelar os demais. Essa memória negativa nem é
conveniente, porque se abriga nas dobras da irrazão, na ponta áspera de nosso
lado vulcânico, lá onde o limite do humano se desembesta em fera, no resgate
ancestral, atávico, dos bichos medonhos que nos coabitam e constituem a mais
profunda raiz genética do nosso ser.
Sabe, Alice, eu às vezes tenho medo de minhas memórias. Elas ficam guardadas em
mim como se numa caixa muito bem trancada e cujas chaves joguei no mar. E não
falo apenas das memórias retorcidas, as que expõem minha face disforme no
espelho da alma, carregadas de culpa, não da culpa da transgressão, e sim da
culpa da omissão, a que se reveste da máscara da indiferença, do descaso, como
se a minha vida fosse um rio capaz de fluir sem prestar atenção aos afluentes.
Falo também das lembranças saudáveis, luminescentes, gratificantes, as que
exaltam o ego e nos delineiam a auto-estima. Porque não se me apraz olhar para
trás. Não quero jamais ser o que fui, quero ser o que não fui, fiel à minha
identidade mais profunda, a que se esconde nas cavernas secretas do meu ser e
aspira pela transcendência.
Não sou de nostalgias, de reminiscências, de cavucar o passado para maldizer o
presente. Sou de ânsias de futuro, movido a utopias. Contudo, prometi a você
que contaria o que sucedeu naqueles anos sombrios. Você me disse que precisa
saber, penetrar fundo os mistérios de sua própria família, recolher os cacos
espalhados pelo passado e tentar reconstruir o mosaico. Assim, tantos
estilhaços que hoje lhe pulverizam a memória talvez se reajuntem e formem um
conjunto conexo, um bordado que, ainda pelo avesso, só exibe linhas
desarmônicas, entrecruzadas, impedindo-a de contemplar o desenho configurado do
outro lado.
Hoje você completa 20 anos. E é preciso que se saiba neta de um herói. Seu avô
são todos aqueles que abandonaram as salas de aula e ousaram enfrentar uma
ditadura militar munidos de idealismo, generosidade, confiança em si e no
futuro. Graças a eles, Alice, você agora não precisa olhar para trás nas ruas,
nem desconfiar do colega de curso ou do vizinho a espreitar-lhe pela janela, e
tentar adivinhar o que significam tantas receitas estampadas nos jornais e
temer o carro de polícia cuja sirene lhe afoga os ouvidos às suas costas.
Alice, felicidade é não se envergonhar da
própria história e cultivar, nos campos profícuos da subjetividade, amorosas
orquídeas irrompidas, como por milagre, nos troncos ásperos dessa conflitiva
existência.
Frei Betto é escritor, autor de
“Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.
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