Indagações a Bento XVI
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- Frei Betto
- 09/04/2007
Vossa Santidade ressuscitou o que o Concílio
Vaticano II havia enterrado: a missa em latim. Uma exigência de monsenhor
Lefebvre, arcebispo francês excomungado em 1988 por se recusar a aceitar as
inovações conciliares.
Criança, assisti a muitas missas em latim, com o celebrante de costas para os
fiéis, segundo o rito tridentino de meu confrade, o papa Pio V, que foi
dominicano. Por que permitir a volta do latim? Quantos fiéis dominam este
idioma? Jesus não falava latim. Falava aramaico. Talvez um pouco de hebraico. E
por viver numa região dominada por Roma, com certeza conhecia alguns vocábulos
latinos, como a saudação romana Ave, que se introduziu na oração mais
popular do catolicismo, a Ave Maria.
Assim como o grego universalizou-se pelo Mediterrâneo graças às campanhas de
Alexandre, o latim estendeu-se na proporção das conquistas do Império Romano.
Por esta lógica, não seria mais adequado adotar, hoje, o inglês? Ora, a grande
maioria dos fiéis católicos encontra-se, hoje, na América Latina. E não entende
grego, latim ou inglês. Exceto poucas palavras, como paróquia, pedra e futebol.
Não é bom que participem da missa em língua vernácula?
Considerado o empenho de inculturação da Igreja, não é contraditório voltar o
latim à missa? Tenho um amigo, ateu até a medula, que adora freqüentar missas
em latim. Para ele, a liturgia reduz-se a um espetáculo. É uma questão de
estética, não a ponte comunitária entre o nosso coração sedento e o
Transcendente.
Inquieta-me a sua afirmação de que é “uma praga” casar pela segunda vez e
proibir os católicos que o fazem de acesso à eucaristia. Os evangelhos revelam
que Jesus comungou com pessoas que, vistas de hoje, andavam distantes da moral
vaticana. Ele defendeu uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos
moralistas da época. Curou o fluxo de sangue de uma mulher fenícia sem, antes,
exigir dela adesão à fé que ele propagava. Curou também o servo do centurião
romano sem primeiro impor-lhe a condição de repudiar a seus deuses pagãos.
Jesus fez o bem sem olhar a quem.
Tenho amigos e amigas que contraíram segundas núpcias. Todos por razões
muito sérias, que seriam melhor entendidas por padres e bispos se eles, como na
Igreja primitiva, tivessem mulher e filhos. (Convém lembrar que Jesus escolheu
homens casados para apóstolos, pois curou a sogra de Pedro).
Contrair matrimônio é algo tão transcendente que a Igreja fez disso um
sacramento. Ocorre que, antes de ser uma instituição, o casamento é um ato de
amor. E há uniões que fracassam, pois somos todos frágeis e pecadores, e nossas
opções, sujeitas a chuvas e trovoadas, deveriam merecer também a misericórdia
da Igreja.
Tenho amigos e a amigas divorciados que reconstruíram suas relações
afetivas e se recusam a aceitar a proibição de comungar. Minha amiga D., três
meses após o casamento, sofreu com o marido um grave acidente de trânsito. Ele
ficou tetraplégico. Dois anos depois, com a anuência dele, ela contraiu uma
nova relação, pois ouviu do homem com quem se casou na Igreja: “Por te amar,
quero-te plenamente realizada como mulher e mãe”. Ela e o novo marido visitavam
periodicamente o homem acidentado, que sobreviveu por sete anos e se tornou
padrinho do primeiro filho do casal. Devo dizer a essa amiga que Deus, que é
Amor, não está em comunhão com ela e, portanto, trate de manter distância da
mesa eucarística, pois a Igreja a considera “uma praga”?
Certa noite eu me encontrava em Boca do Acre, em plena selva amazônica,
numa celebração de Comunidade Eclesial de Base. Dona Raimunda, mãe de seis
filhos, cujo marido havia partido para a Transamazônica em busca de trabalho -
onde ficou quatro anos sem dar notícias (e ela soube que, lá, ele constituíra
outra família) -, disse na missa, no momento da Oração dos Fiéis: “Quero
agradecer a Deus por me ter dado um outro marido que é um pai bondoso para os
meus filhos.” ·
Dona Raimunda se uniu a outro homem que a ajudava na sobrevivência e na
educação dos filhos numa situação de extrema penúria. Eu deveria dizer a ela
para não se aproximar da mesa eucarística? Naquele momento, o papa João Paulo
II, em visita ao Chile, dava comunhão ao general Pinochet.
Querido papa: leio na Primeira Carta de João que “Deus é Amor: aquele
que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (I João
4, 16). Essas pessoas que citei, e tantas outras que conheço, amam e, portanto,
Deus permanece nelas. Devo adverti-las que não são amadas pela Igreja e,
portanto, estão proibidas de receber o pão e o vinho transubstanciados no corpo
e no sangue de Jesus, o Senhor da compaixão e da misericórdia?
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
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