Engana que eu gosto
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- Frei Betto
- 28/09/2007
Ora, é evidente que contra o senador não há
“provas conclusivas”, tudo não passou de gentileza do lobista de uma
grande empreiteira. A contabilidade pecuária está em ordem, embora haja certa
desordem na documentação pertinente.
Desde muito cedo o cidadão brasileiro é educado na síndrome do engano,
enfermidade de etiologia política cuja cura só pode ser alcançada
mediante doses maciças de auto-estima e senso cívico.
Os descobrimentos da América e do Brasil foram magníficos encontros de
culturas transoceânicas. O saldo de milhões de indígenas mortos é mero acaso de
organismos vulneráveis em suas defesas imunológicas às gripes e
resfriados que os ibéricos contraíam em contato com as frias correntes
marítimas.
A Casa Grande, generosa com os escravos, tratava-os como filhos, e uns
tantos senhores, livres de todo preconceito, chegaram a mesclar seu
sangue de branco ao prenhar negras e gerar o mestiço e este símbolo
nacional chamada mulata.
Graças à benevolência da Casa Grande é que a senzala, farta de carnes
variadas, brindou-nos com o prato de preferência nacional: a feijoada. E
que não se olvide o bom-gosto do caipira, inventor deste coquetel que,
hoje, conquista o sabor mundial: a caipirinha.
A rebelião de Vila Rica não passou de uma transposição extemporânea, ao
solo pátrio, das idéias iluministas em voga na Europa. O bando de
intelectuais, surpreendidos em sublevação contra a Coroa, fez de um
alferes boi de piranha. Tanto que outro qualificativo eles não mereceram
senão o de inconfidentes, incapazes de guardar confidência, segredo. À
exceção do que teve o pescoço enforcado, deduraram uns aos outros. Hoje,
o evento passaria à história como Deduragem Mineira.
E a Guerra do Paraguai? Foi lá o nosso Exército pacificar aquele povo
iludido pela mente insana de um caudilho raivoso disposto a defender valores
anacrônicos: a soberania nacional e os direitos sociais. Tamanha a paz
que os nossos militares impuseram à nação vizinha, que apenas em
cemitérios se pode encontrar tanta quietude.
Em Canudos, um bando de fanáticos, liderado por um fundamentalista
desmiolado, ousou contrapor-se à proclamação da República! Não tivesse
aquela gente resistido à ação pacificadora do Exército, teriam todos
sobrevivido e, ordeiramente, retornado ao sadio trabalho nas lavouras
canavieiras.
Tantas proeminentes figuras em nossa bela história: Vargas, pai dos
pobres; JK, 50 anos em 5; Jânio, o homem da vassoura; Collor, o caçador
de marajás! Merece destaque a Revolução de 1964, que salvou o Brasil da
ameaça comunista e imprimiu índices astronômicos ao nosso desenvolvimento. Vide
a Transamazônica, a Ferrovia do Aço, o Mobral e o fim do analfabetismo!
Se um bando de subversivos preferiu trocar canetas por armas,
insatisfeitos com a hierarquia trasladada dos quartéis às ruas, não
fizeram as Forças Armadas outra coisa senão reagir em defesa da lei e da
ordem.
Assim, de engano em engano, para o bem de todos e a felicidade geral da
nação, transcorre a nossa história. Ela que avança em ciclos de
prosperidade, do pau-brasil ao ouro, do café à cana-de-açúcar, do minério à
madeira amazônica, da soja à carne e, agora, retorna aos canaviais, de
onde jorra o etanol, a bola da vez a oferecer ao mercado externo
Sabemos todos que a verdade é inconveniente, incômoda, constrangedora. É melhor
esse jeitinho elitista, capaz de acomodar as situações mais conflitivas e
adotar, em nossas escolas, a versão cordial sobre o povo brasileiro. Povo
pacífico, ordeiro, leal, com exceção de uns poucos que enxergam mensalão
onde houve apenas “operações não contabilizadas”. E ainda querem avacalheirar
o presidente do Senado!
Engana que eu gosto!, diz a nação. Porque não há reação, não há
manifestações nem mobilizações. Cadê as lideranças populares, as centrais
sindicais, as pastorais proféticas? Fora um ou outro protesto ou gesto de
indignação, tudo permanece como dantes no quartel de Abrantes.
Razão tinha Proust que, em Sodoma e Gomorra, escreveu: “No mundo
da política as vítimas são tão covardes que não se consegue considerar os
algozes maus por muito tempo.”
Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.
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