O senador imexível
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- Frei Betto
- 05/10/2007
“Até
quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?”, indaga Marco Túlio Cícero,
referindo-se ao senador Lúcio Sérgio Catilina, a 8 de novembro de 63 a.C., em Roma. Flagrado em
atitudes criminosas, Catilina se recusa a renunciar ao mandato, urdindo um
golpe contra o Senado.
Cícero, orador emérito, respeitado por sua conduta ética na política e na vida
pessoal, põe em sua boca a indignação popular: “Por quanto tempo ainda há de
zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua
audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem
os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local
tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes
senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos
estão à vista de todos?”
“Ó tempos, ó costumes!”, exclama Cícero movido por sua atormentada perplexidade
diante da insensibilidade do acusado. “Que há, pois, ó Catilina, que ainda
agora possas esperar, se nem a noite, com suas trevas, pode manter ocultos os
teus criminosos conluios; nem uma casa particular pode conter, com suas
paredes, os segredos da tua conspiração; se tudo vem à luz do dia, se tudo
irrompe em público?”
Jurista, Cícero se esforça para que Catilina admita os seus graves erros: “É
tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos
incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós
mais claros que a luz do dia.”
Se Catilina permanece no Senado, não é apenas a vontade própria que o sustenta,
mas sobretudo a cumplicidade dos que teriam a perder, com a renúncia dele,
proveitos políticos. Daí a exclamação de Cícero: “Em que país do mundo estamos
nós, afinal? Que governo é o nosso?”
Cícero não teme ameaças e expressa o que lhe dita o decoro: “Já não podes
conviver por mais tempo conosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto.
(…) Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua vida? Que
ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? (…) Refiro-me a
fatos que dizem respeito, não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua
penúria doméstica e à tua má fama, mas sim aos superiores interesses do Estado
e à vida e segurança de todos nós.”
Os crimes de Catilina escancaram-se à nação. Seus próprios pares o evitam, como
assinala Cícero: “E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento
falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria
ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste
Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e
parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém
aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras
esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio?”
Catilina finge não se dar conta da gravidade da situação. Faz ouvidos moucos,
jura inocência, agarra-se doentiamente a seu mandato. “Se os meus escravos me temessem
da maneira que todos os teus concidadãos te receiam” – brada Cícero -, “eu, por
Hércules, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade,
não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que
injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos,
preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a
gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes,
que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a
hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na
alma e no coração?”
Cícero não demonstra esperança de que seu libelo seja ouvido: “Mas de que
servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu,
como poderás algum dia corrigir-te?” E não poupa os políticos que, apesar de
tudo, apóiam Catilina: “Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou
não vêem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que vêem.”
Catilina acaba se refugiando na Etrúria e morre em 62 a.C.. Cícero, afastado do
Senado por Júlio César, é assassinado em 43 a.C.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sergio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros livros.
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