Após a bonança, a tempestade
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- Gabriel Brito
- 05/01/2015
Após testemunharmos da forma mais cruel possível o significado da globalização e mercantilização do futebol, e o papel reservado ao Brasil nesse processo de “divisão internacional da bola”, agora entramos num ano de muitas incertezas.
Ou, para ser mais direto, as dificuldades que prometem travar a economia brasileira por um período razoável, talvez todo o mandato dilmista, já arrombam a porta dos clubes do país. Ao menos no futebol, já estamos em franca recessão.
Depois de curtir adoidado os tempos de benesses econômicas, nossos clubes já voltam algumas casas em seus sonhos de grandeza.
Para simbolizar, nada mais claro que o anúncio da Unimed de encerrar seus investimentos no Fluminense, após 15 anos de uma parceria que recolocou o clube (apesar das mãozinhas ‘invisíveis’) novamente entre os grandes do país.
Outros como Grêmio e Botafogo também anunciam imensos cortes de gastos, enquanto os demais tratam de se readequar à nova-velha realidade, para não falar daqueles que se enrolam com salários atrasados e novas dívidas.
Não à toa, a grande articulação política que travam é repetição de tristes filmes: aprovar no Congresso uma Lei de “Responsabilidade” Fiscal que refinancie 5 bilhões de reais em dívidas com a União. O problema, dessa vez, é que o novo movimento dos jogadores faz oposição total à ideia, uma vez que nenhuma contrapartida fica escrita.
“Colocamos depois”, já disseram alguns dos distintos homens da política e do futebol, acreditem.
E estamos só no começo da freada econômica. A Caixa Econômica, praticamente maior investidor atual do futebol brasileiro, patrocinadora de quase metade dos 40 clubes das duas principais divisões, ainda não deixou claros seus próximos passos no esporte.
Por estarmos às portas das Olimpíadas, e ela incentivar atletas e equipes de diversas modalidades, talvez segure um tanto mais. Mas o anúncio de Dilma de que pretende abrir o capital do banco público na Bolsa de Valores parece indicativo de que é melhor ter um plano B na gaveta. E se a Caixa sair, parece crível que o BMG, outro notório investidor do futebol, tire o cavalo da chuva.
Tudo isso menos de 12 meses depois da Copa do Mundo mais cara da história, cujo rombo econômico ainda passaremos décadas medindo. Está no mínimo imprevisível como se dará o pagamento das suntuosas ‘arenas’ e seus gordos financiamentos via BNDES. Tanto clubes beneficiados como consórcios privados presenteados com a gestão de estádios outrora públicos ainda não deixaram claro como quitarão tamanhos déficits – se bem que Sergio Cabral, ex-governador do RJ, disse uma vez que o Estado “não tem interesse em lucrar com o Maracanã”. Romântico, não fosse pura roubalheira no caso em tela.
Como previsto pelos chatos de sempre, “eles iam pegar essa grana toda, aumentar todos os custos e manter tudo no mesmo nível”. Péssimo nível, diga-se, o pior que já se teve notícia por essas bandas que continuam sem um projeto de futebol doméstico forte e exportam cada vez mais atletas, cada vez mais jovens, para locais cada vez mais remotos.
Dentro desse cenário, a CBF continua a piorar após a saída de Ricardo Teixeira. Depois de uma transição com o ex-político da ARENA, que trouxe Felipão e Parreira para morrermos de vez, Marco Polo del Nero, autêntico analfabeto no ramo, assumirá o cargo em abril.
Incompetência sem tamanho dos demais dirigentes, dado que o senhor em questão promoveu os piores Campeonatos Paulistas da história e asfaltou o caminho definitivo para a falência do outrora forte interior do estado, cujos clubes ocupam cada vez menos espaço. Por outro lado, abriu caminho para times-empresa (ou seja, de mentira) como Red Bull e Audax (grupo Pão de Açúcar) tomarem o lugar de camisas e cidades de peso.
No momento, seu nome é mais veiculado a namoradinhas de idade universitária (na minha casa chamamos por outro nome) do que a novas ideias para o futebol.
Enquanto isso, vemos Eurico Miranda reassumir o Vasco sob as mesmas bravatas de tempos nada saudosos em termos administrativos e institucionais, o que combina perfeitamente com o atual vazio de poder que se generaliza.
Sim, além de carecermos absurdamente de lideranças no âmbito do extracampo, devidamente arejadas, vemos que o mesmo se dá em escala continental.
Na vizinha Argentina também há o mesmo vácuo, além de um uso político pra lá de questionável da parte do governo (voltaremos ao tema neste ano). Já na Confederação Sul-Americana de Futebol, a situação é similar. Após a saída de Nicolás Leoz, a velha confraria que mantém enorme obscuridade sobre o futebol ‘sudaca’ continua sem muito rumo, de modo que acontecimentos estranhos dentro de campo podem e devem continuar tratados dessa forma: ‘estranhos’.
Talvez, o mais irritante de tudo é que passaremos o ano bombardeados por discursos modernizantes de alguns gravatinhas que descobriram no futebol um novo nicho de mercado pra repetirem suas regrinhas de gestão, governança, consultoria e relação com o “cliente” – que de cliente não tem nada, pois não há desastre ou sacanagem que o faça mudar de preferência. Nada na vida é mais fiel e seguidor do que um torcedor, de modo que eu, de ressaca, sei fazer meu time ser rentável economicamente.
Ou seja, aquilo que já podemos chamar de ‘modelo thatcherista’ implantado no futebol nacional ainda tentará embalar e criar seus ‘cases’ de sucesso. Para alguns gigantes, deve dar minimamente certo. Para a imensa maioria, restarão os papeis de coadjuvantes, tendência que já vemos se acentuar.
Olimpíadas, lembra?
É difícil estabelecer uma medida em relação a outros países e épocas que jamais vivenciamos. Mas, aparentemente, o Brasil é a sede olímpica mais apática que já vimos. Tudo às avessas, pois é a primeira vez que a América do Sul recebe os Jogos.
Como dito no artigo retrospectivo, além da ausência de clima esportivo, carente de qualquer impulso político e formativo na área, sequer sabemos a real condição do estádio do Engenho de Dentro, o Engenhão, destinado a receber as competições de atletismo, além das cerimônias de abertura e encerramento das Olimpíadas.
É provável que se resolva, e logo no início de 2015 o estádio seja reaberto. Ainda assim, é vergonhoso, um descaso único em relação a um evento tão grandioso. O que só comprova a tese de que os jogos são apenas fachada pra se vender a “cidade-negócio”, algo bem expresso na criminosa valorização imobiliária dos últimos anos, tanto no Rio como em outras cidades.
Enquanto tal descaso continua marcando o esporte brasileiro, vemos outras modalidades sem tanta tradição ocuparem o espaço, através de enormes iniciativas de marketing. Não criamos raízes e atletas em modalidades históricas e o mercado nos inventa novos esportes, por quaisquer motivos de atratividade. Não se trata de desprezá-los, mas um bom debate seria merecido.
Assim, o que antes era passatempo ou diversão vira “esporte da moda”. É o que vemos com a febre em torno de Gabriel Medina, campeão do mundo de surfe. Respeitamos, mas não é esporte olímpico. Consta, até onde sabíamos, na lista de “esportes radicais”, seja lá o que signifique.
Ao mesmo tempo, a pernambucana Etiene Medeiros venceu o mundial de 50 metros (costas) de natação e quase ninguém sabe, muito menos o Jornal Nacional exibe matérias especiais com afirmações de que “hoje em dia já não se vê a natação como esporte de maloqueiro”.
Futebol americano, pôquer e as tais artes marciais mistas (o Vale Tudo com nome limpinho) também são outras modalidades que têm sido muito mais prestigiadas do que aquelas que veremos no Rio em 2016 – e que, a nosso ver, se relacionam muito mais claramente com processos socioeducativos.
Pra completar, o Ministério dos Esportes não escapou da “rifa da governabilidade”, e foi entregue às mãos de George Hilton, neopentecostal sem relação alguma com a área, do inexpressivo e fisiológico PRP, indicado por Marcelo Crivella. Desnecessário comentar.
Mas, para ser justo, nada que vá piorar as recentes gestões do PC do B, especialmente a última, de Aldo Rebello, confessadamente a serviço exclusivo da Copa do Mundo.
Se é verdadeira a tese de que o país apodrece em todas as frentes institucionais, enquanto todos os caminhos são abertos para as inexoráveis rapinas do mercado, o esporte é só mais uma vítima da eterna promessa brasileira.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.