Correio da Cidadania

Crime político. Resta saber quem ganhará

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Não acabou. E jamais acabará. Talvez essa seja a única definição possível do trágico Superclásico argentino, entre Boca Juniors x River Plate, de 15 de maio, que deveria ter marcado mais um capítulo memorável do futebol sul-americano.

 

Mas não foi assim que quiserem os demônios do futebol – afinal, se tanto falamos na magia das divindades que o monitoram, temos de levar essa máxima ao outro lado do mundo sobrenatural.

 

O assunto continua sendo tratado exaustivamente, dentro e fora da Argentina. Até o Datena, um desses gurus televisivos da humanidade, entrou em cena. Sangue e audiência, pelo bem do futebol e da família, é claro.

 

Não cabe aqui voltar a descrever o bochorno da Bombonera. As imagens estão sendo analisadas à exaustão e novas tomadas continuam a aparecer, como a que veio à tona na segunda-feira, 18, que culpabiliza um conhecido hincha bostero, daqueles que conseguem se hospedar no mesmo hotel do time em jogos fora do país.

 

Podem apontar e posteriormente punir o tal Padeiro Napolitano e seus cerca de 10 cúmplices na ação. Alguns fingirão convencimento, enquanto os mais curiosos continuarão a escavar as motivações mais profundas desse suicídio futebolístico promovido pela torcida cujo time ainda tinha metade do jogo pra buscar o placar necessário.

 

Parece estar claro que a delinquência pura e simples é a última razão a explicar a ação de todo um grupo de atirar um estranho e agressivo gás nos jogadores do River.

 

Assim como no Brasil, a Argentina também é rodeada de interesses cada vez maiores em torno do futebol e suas relações políticas. Talvez isso seja até mais antigo na vida dos nossos vizinhos.

 

Como bem levantou o jornalista Gustavo Mehl, há um acirrado ano eleitoral pela frente e ninguém menos que o presidente mais vitorioso da história do Boca, Mauricio Macri, se postula como maior adversário do kirchnerismo e seus 12 anos de hegemonia.

 

Kirchnerismo, sabemos bem, que muito se meteu com futebol nesses anos. Não só “estatizou” os direitos televisivos do campeonato local, e exibe todos os seus jogos na TV pública, como fez acordos a céu aberto com as barras para que, supostamente, colaborassem no monitoramento de seus próprios pares nas canchas, a fim de conter sua violência, como se fossem milícias comunitárias.

 

Surreal, porém verídico. E nada inédito, dado que barra bravas sempre estiveram por dentro das movimentações políticas, partidárias e sindicais no país platino. No caso deste ano, ainda não se sabe por quem La 12 penderá. Claro que a dúvida não se deve a razões ideológicas.

 

A barra brava do Boca Juniors, por sinal, encontra-se dividida, o que oferece o maior indício sobre a razão do ataque a gás. Enquanto Rafael di Zeo e Mauro Martin entram em acordo para retomarem o controle da barra brava em parceria (estavam brigados depois da prisão de di Zeo e ascensão de Martin na arquibancada), sob o pouco velado apoio da diretoria xeneize, uma turma de Lomas de Zamora (sul bonaerense) não quer entregar o butim sem resistência.

 

Dessa forma, como em outros momentos do futebol argentino, a barra brava, ou parte dela, promove uma ação deliberadamente prejudicial ao próprio clube como demonstração de força a quem não queira lhes reconhecer o devido poder. Costuma funcionar.

 

No entanto, ainda parece insuficiente para explicar que uma turma tenha assumido o risco de fazer isso numa ocasião de quase inigualável importância, desclassificando o próprio clube diante do maior rival, com a eliminação da Copa Sul-Americana ainda fresca na memória.

 

Pode ser ingênuo, mas cabe questionar. Coisa que o jornalista Walter Falceta, em um grupo de discussão, pautou muito bem, em texto intitulado “O Boca e o putsch fascista de Buenos Aires”:

 

“Daniel Angelici (presidente do Boca) é marionete de Mauricio Macri, prefeito direitista de Buenos Aires, e candidato primário à sucessão de Kirchner na presidência da República.

 

O que sopram os amigos argentinos?

 

- A dupla de playboys do trambique, ainda que com negativas veladas, quer derrubar a Bombonera e construir um novo estádio, gerando receitas para seus comparsas empreiteiros. E, lógico, recebendo por antecipação a famosa caixinha, fundamental numa campanha presidencial.

 

- Angelici tem na mão um grupo de barra bravas, equivalentes aos organizados daqui. Alguns vivem dos cartolas e para eles executam serviços sujos. Já realizaram ações violentas parecidas na campanha de Macri na eleição municipal.

 

- Na verdade, o plano de Angelici é restringir aos sócios-torcedores o acesso aos jogos do time. Lógico, os barras parceiros sempre terão passagem livre às arquibancadas.

- Angelici e seu dono acreditam que há torcedores boquistas demais, de modo que é possível sustentar-se somente com a elite. Os pobres que assistam em casa, de preferência pelo pay-per-view.

O que se vê, como tendência no Boca, é a política que Macri deseja para o país. É autoritário e enriquece seus amigos e padrinhos em processos varejistas de privataria.

Macri é amigão dos tubarões da especulação imobiliária, assim como dos CEOs de boa parte das corporações transnacionais em atividade na Argentina”.

 

Pois é. A discussão sobre arenas e modernização também chega à Argentina. Quem conhece la Boca já se deparou com pixações com palavras de ordem do tipo “de la Boca no vamos”.

 

Macri, além de engenheiro riquíssimo e muito ligado às construtoras, é tão higienista quando um Gilberto Kassab. Bom nos negócios, sabe muito bem o sucesso que foi a construção das arenas no Brasil – não para nosotros, é claro.

 

E qual desculpa melhor que essa para desmoralizar a mítica Bombonera, com uma eliminação para o maior rival, que renderá anos de gozação, e começar a martelar a necessidade de um novo estádio para o clube?

 

Impossível concluir o assunto em poucos dias. São muitas nuances em jogo: controle da barra, política interna, eleições gerais, sonhos de arena, mercantilização do jogo... Talvez nunca cheguemos a uma resposta definitiva.

 

Será muita pobreza se a imprensa enveredar pelo caminho fácil de criminalizar as torcidas organizadas através do episódio. Que foi uma bandidagem, qualquer um sabe. A serviço do que e de quem é que são elas.

 

Não temos direito à inocência no caso. Contamos com precedentes de cortinas de fumaça que inauguraram projetos de dita modernização – conservadora.

 

Hillsborough, a tragédia que matou 96 torcedores do Liverpool, foi uma dessas farsas úteis. O ano, 1989, diz muito: fim do bloco soviético, queda do muro de Berlim e consolidação do “Consenso de Washington”. Não deu outra: o neoliberalismo foi imediatamente instalado no futebol britânico, inaugurando processo que até hoje se mundializa e conquista novos territórios – ou mercados.

 

Depois, bem depois, a máscara caiu e o governo inglês admitiu a fraude investigativa. Aqui no Brasil, jamais vimos uma discussão séria e profunda acerca do episódio do Pacaembu em 1995, na famosa briga campal entre são paulinos e palmeirenses, que deixou um morto no gramado.

 

A seguir, marcou-se uma linha de corte e o futebol paulista nunca mais foi o mesmo. São 20 anos de “choque de ordem”, restrições a granel e a mesma rotina de violência entre as torcidas. Mas as arenas finalmente ficaram de pé e os corintianos se perguntam o que aconteceu com sua torcida.

 

Para além do futebol, o célebre atentado às torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001, tem sua elucidação tão obscurecida quanto a operação do exército norte-americano que matou Bin Laden, mentor intelectual dos ataques, em solo paquistanês. O que se sabe muito bem é que, depois da tragédia, os Estados Unidos editaram o Patriot Act, iniciaram uma nova fase de sua política externa de exercício de poder em qualquer canto do planeta que se considere necessário e não tardaram muito em invadir e saquear o Iraque.

 

Portanto, podemos e devemos esperar todos os desdobramentos possíveis do episódio da Bombonera. Mas uma coisa temos de ter clara: o atentado contra Driussi, Ponzio, Kranevitter e cia foi contra o futebol, contra todos nós, bosteros, millonarios e torcedores de todo o mundo. Sofremos um crime político e o tempo dirá por quê.

 

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania. Colabora com a webrádio Central 3, onde este texto foi publicado.

Twitter: @gabrimafaldino

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