Correio da Cidadania

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Após um ano tão turbulento nos mais importantes segmentos da vida cotidiana, fica difícil dizer algo de novo numa retrospectiva esportiva, especialmente após o apocalíptico 7 a 1 que fez até os donos do circo exercitarem um pouco de crítica – não muita autocrítica.

 

Até porque os mais relevantes acontecimentos derivam dos já elencados desmandos dos anos anteriores, tanto no plano brasileiro quanto internacional.

 

Mesmo assim, não podemos deixar de brindar o dia 27 de maio, data que marca o início da queda dos 40 anos da dinastia que dominou a FIFA e promoveu a total mercantilização do futebol.

 

Iniciado por João Havelange ao assumi-la em 1974, o processo foi continuado magistralmente pelo suíço Joseph Blatter, antigo secretário-geral da entidade, a presidir a FIFA desde 1998. Agora de saída, lubrificou e fortaleceu os esquemas de venda de direitos midiáticos e financiamento de federações, com todo direito a propinas e enriquecimento pessoal para os principais dirigentes espalhados pelo mundo.

 

A data refere-se à manhã em que o FBI, como nos filmes e seriados policiais mais idealistas, trouxe à tona investigação há anos em curso, tomou conta do hotel Bar au Lac, em Zurique, e prendeu parte da alta cúpula do esporte.

 

A operação se deu dois dias antes do Congresso de cartas marcadas que daria a Blatter mais quatro anos de mandato e se justificou pelo fato de ser uma rara ocasião em que dirigentes do mundo inteiro se reuniam.

 

Obviamente, não podemos ser inocentes e acreditar que amáveis homens da lei saltaram da televisão para a vida real e vieram salvar o futebol de seus usurpadores.

 

Como bem mostra uma das mais indicadas leituras do momento, o livro Política, Propina e Futebol do jornalista brasileiro Jamil Chade, que acompanhou a rotina da FIFA por 15 anos, todos os envolvidos na trama tem lá seu interesse estratégico.

 

Para resumir, a motivação do grande Império nasceu da derrota de sua candidatura à sede da Copa de 2022, dada aos petrodólares do Catar e toda a ramificação que seus príncipes articularam nos bastidores, já há bons anos, a ponto de seus monarcas terem adquirido a propriedade de alguns grandes clubes europeus, entre outros negócios no centro econômico do futebol.

 

Além disso, acostumados à “liderança mundial” em assuntos muito mais encarniçados que um jogo de bola, faz tempo que se deram conta de toda a potencialidade do futebol, comprovadamente imune a colapsos econômicos, como se vê após a crise de 2008.

 

Não é coincidência que tenham logrado desmoralizar e expulsar boa parte da velha cartolagem no exato momento em que impulsionam seu campeonato nacional, que vive fase de crescimento de público, renda, investimentos e visibilidade.


Ademais, como primeiro consolo, o velho irmão do Norte já articulou a recepção da Copa América do Centenário em seu solo.

 

Trata-se de mais uma imposição, sem qualquer mediação, dos interesses de quem tem mais bala na agulha.

 

A referida competição é a mais antiga do mundo (entre aquelas ainda existentes) jogada por seleções nacionais e, como todo torcedor sabe, sempre foi disputada pelos países sul-americanos em suas quase 40 edições.

 

Ainda que tenha permitido a partir dos anos 90, por convite, a entrada de alguns países de fora desse escopo, é o bom e velho Campeonato Sul-Americano de Seleções, sempre disputado até os limites das “terras bolivarianas”.

 

Agora, a edição tirada da cartola e que seria realizada no Uruguai (sede da primeira edição, em 1916, e cujo way of life é seu extremo oposto), passa às mãos de quem se candidata a novo “líder global” dessa infalível indústria.

 

Até porque a vassoura do FBI tirou do cenário, justamente, uma maioria de cartolas das Américas – e teve como colaborador principal, como bem conta o livro de Jamil Chade, o presidente da federação de Futebol dos EUA, Chuck Blazer, também implicado e que desde 2011 prestava a famigerada delação premiada aos agentes policiais.

 

Assim, se há um vazio de poder na política do futebol, ele é maior do lado de cá do mundo. E isso certamente facilitou a entrega do tradicional torneio a quem nunca o sediou.

 

Portanto, não há brecha para a ingenuidade. Além do mais, às vésperas de se eleger o novo presidente da FIFA, não há qualquer debate sério acerca de algum tipo de “reforma política” que viesse a democratizar os poderes no esporte mais popular.

 

Ou seja, torcedores e até os jogadores continuarão como figurantes na definição dos rumos do futebol.

 

Ainda assim, o triste e merecido fim de tantos parasitas precisa ser festejado. Uma vitória em meio a inúmeras decepções e episódios que só minaram a credibilidade do esporte bretão.

 

E, sinceramente, tinha de vir de quem manda no mundo. Afinal, já estava tudo escancarado há muito tempo e só não se tomou atitude similar mais cedo por, digamos, preguiça da “comunidade internacional” que manda(va) nessa bodega.

 

Se havia alguém capaz de revalidar minimamente as crenças nas regras do jogo, eram, infelizmente, aqueles que dele mais se beneficiam, e jamais seus capatazes ou maus imitadores. Pode ser uma pena, mas parece realista.

 

Brasil

 

Em meio a essa movimentação no tabuleiro global, o Brasil exerce seu tradicional papel: o grandão bobalhão da turma, sempre apático e incapaz de se arrumar na vida sem copiar de forma estanque modelos externos.

 

A cascata do momento é trazer modelos de gestão, claro!, da Alemanha. E, por que não, dos próprios EUA, ainda que a visão de organização esportiva e até modelos de competição deste país sejam um caso à parte no mundo inteiro. Quem acompanha seus principais esportes – beisebol, futebol americano e basquete – sabe perfeitamente disso.

 

Como cansamos de dizer nos últimos anos, é tudo uma grande farsa, pois a tal modernização do futebol brasileiro é capitaneada pelas mesmas figuras de sempre.

 

É certo que agora desembarcaram alguns executivos de mercado com seus MBAs e discursos decorados sobre marketing, gestão, metas etc. Mas no topo da pirâmide as relações políticas e visões de mundo são as de sempre.

 

Desse modo, enquanto o presidente biônico da CBF era preso na Suíça (onde ficou dois meses encarcerado) seu sucessor Marco Polo del Nero, e virtual presidente desde que Ricardo Teixeira se autoexilou em Miami por ver-se à beira da queda, tentava pateticamente se desvencilhar do histórico de corrupção.

 

Após meses de enrolação, finalmente jogou a toalha, muito mais pela total falta de clima perante opinião pública e parte dos grandes patrocinadores do que por um movimento digno de nota do ecossistema do futebol brasileiro.

 

Mais uma vez, os supostos agentes da modernização não tiveram capacidade alguma de se articular e limpar o terreno da indefensável CBF, de modo a tomar as rédeas da casa e estabelecer um novo projeto para o futebol brasileiro.

 

A exemplo da triste história de engodos nacionais, o máximo que conseguem é uma modorrenta transição “por cima”, em total clima de paz entre velhos e novos cartolas.

 

Desmoralizado ao extremo, o governo nem ousa falar grosso sobre o tema, mesmo pouco tempo depois de bancar sozinho a Copa do Mundo mais cara da história – cujo legado, agora podemos afirmar com todas as letras, é zero.

 

Dentro de campo

 

Pra fechar o artigo falando daquilo que deveria nos apetecer, nada de novo quanto ao futebol em si. O modelo dos estádios-shopping continua sua cruzada, a elitização de seu acesso prossegue e a mídia faz toda a propaganda possível a favor deste modelo francamente neoliberal.

 

No entanto, faz-se água mais rápido do que imaginávamos. Os estádios superfaturados e privatizados a “Consórcios Lava-Jato” fracassam economicamente e os amiguinhos do rei já começam a devolver as concessões regaladas.

 

Até o Maracanã (ou o que sobrou dele) deve ser devolvido nos primeiros meses de 2016. E se aquele que já foi nosso grande templo “dá prejuízo”, fica evidente que o futuro das “arenas” de outros centros é inglório.

 

Para citar apenas um caso de toda a cretinice desses anos, e porque estamos às portas dos Jogos Olímpicos, passará à história o fato de o megaestádio de Brasília, onde não há nenhum clube de grande torcida, não ter sido projetado para a prática de diversos esportes, especialmente as modalidades do atletismo.

 

No mais, vai se confirmando a tese da concentração das conquistas nas mãos dos times mais endinheirados, outro desdobramento do novo modelo econômico – em especial nas cotas de televisão, distribuídas de forma altamente desigual e cujos critérios serão cada vez mais questionados.

 

É interessante ver Corinthians e Palmeiras abocanharem os títulos nacionais de 2015 justamente no primeiro ano de uso de seus novos estádios. Claro, as bravatas triunfalistas dos arautos do fut-business virão com tudo. Como sempre, esquecerão de avisar que “não tem pra todo mundo” e venderão sonhos de verão para aqueles que jamais poderão se igualar a clubes tão grandes e populares.

 

Está claro que a tendência é vermos nos próximos anos o mesmo da Europa desde os anos 90: a crescente concentração dos primeiros lugares entre uma elite cada vez mais reduzida de clubes.

 

 

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.


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