Correio da Cidadania

Neymar está órfão

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Por um desses caprichos do destino, a longeva existência de João Havelange, talvez o maior símbolo da palavra cartola, chegou ao fim em meio aos Jogos Olímpicos que de alguma maneira ajudou a trazer ao Brasil.

 

Um século é tempo suficiente para amealhar uma biografia positiva e outra negativa dentro da mesma jornada. Havelange, e basta observar os obséquios do momento de sua passagem, teve as duas a seu alcance e abraçou aquela que levou seus parceiros do COI a não manifestarem luto em plena capital carioca.

 

Oriundo da ilustrada elite dos “sportsmen” de um Rio de Janeiro que se modernizava com os ares do mundo, sempre circulou pelos grandes salões, desde os clubes mais finos até as salas e gabinetes do poder.

 

Assim, não surpreende que tenha se mantido acoplado ao grupo dos conchavos e conveniências. Primeiro nos esportes aquáticos, de onde provinha, depois ocupando cargos na direção do esporte nacional, até chegar à presidência da antiga CBD.

 

Um dos episódios esquecidos de sua longa história é o desastre da Copa de 1966, no qual foi o grande ideólogo da convocação do supergrupo de 44 jogadores, divididos em quatro times, na fase preparatória do que se supunha um passeio em busca do tri.

 

Tratava-se da ambição em suplantar a figura de Paulo Machado de Carvalho, a quem muito se cumprimentou pelo trabalho de coordenação e planejamento que deu suporte aos títulos de 1958 e 1962, avanço reconhecido até hoje por todas as correntes do futebol.

 

Mesmo diante de retumbante fracasso, manteve o prestígio e continuou sua caminhada. Em 1974, bateu Stanley Rous naquela que ficou marcada como a eleição da FIFA que dividiu as águas do futebol. A partir do ano da Copa do Mundo na Alemanha da Adidas, nada seria igual.

 

Como largamente documentado pela imprensa esportiva, e tornado mais público nesta década, acumulou vantagens e privilégios, acomodou interesses e grupos diversos, sempre no sentido de ampliar o mercado do futebol.

 

Inegavelmente, estava a par das grandes transformações mundiais, dado que sua ascensão se ladeava ao próprio avanço da globalização nas relações econômicas.

 

A depender do ponto de vista, apareceu no lugar certo na hora certa. Não fosse ele, alguém certamente comandaria o processo de transformação do futebol na bilionária indústria que hoje conhecemos.

 

Graças à apurada visão para os negócios, implantou a mentalidade de empresa multinacional monopolista na FIFA, a partir da absorção de todas as modalidades possíveis, desde os torneios juvenis até as alternativas da areia, salão e o que mais se apresentasse como filão.

 

De certa maneira, metaforizou a relação entre uma velha elite com seus pudores tradicionalistas e uma nova classe emergente, ávida em implantar seus conceitos e aproveitar as oportunidades colaterais a serem geradas.

 

O jogo foi se moldando aos interesses da televisão, primeira grande financiadora da indústria do futebol, para depois se enquadrar em conceitos de gestão empresarial inspirados nas doutrinas que o planeta abraçava.

 

Sempre no sentido da liberalização, a entrada em cena de uma miríade de agentes e empresários foi inevitável, em especial após a superação das antigas leis do passe. O que parecia progressista mostrou-se apenas uma nova forma de domínio do mercado, desta vez por entes privados que se colocam alheios às camisas e instituições esportivas.

 

Claro que todo o processo não pode ser atribuído a um homem só. Como dito acima, não fosse Havelange alguém faria o serviço. E manteria relações com os mais diversos e espúrios regimes políticos, também em nome da democratização e disseminação do futebol.

 

Como intitulado no famoso livro de Franklin Foer, o futebol explica o mundo. Portanto, não se trata de vilanizar uma figura cujos momentos finais respondem por si só, em especial após a admissão das milionárias propinas no auge da guinada mercantil do esporte, marcadas na relação com a empresa de marketing esportivo ISL e suas aventuras financeiras que terminaram em traumática falência.

 

Havelange representou no futebol aquilo que vemos em todas as esferas da política deste século 21, isto é, a dissimulação de compromissos éticos em nome de um interesse maior e mais importante: a fluência dos negócios para além de questões ditas ideológicas.

 

Em tradução livre, a política a serviço dos interesses corporativos, na mesmíssima linha neoliberal que já deprime o mundo há nada menos que uma década. Com a fantástica vantagem de que no futebol praticamente não há curva descendente, posto que os povos continuam a consumi-lo faça chuva faça sol.

 

Diante de tal conjuntura, fica mais fácil compreender porque atores políticos e econômicos de remotas praças investem fortunas num jogo que virou instrumento de prestígio e legitimidade. E, talvez menos visível, também a absorção de todos, inclusive dos próprios atletas, da mentalidade empresarial, ou algo que o valha, no sentido de administrar a carreira mais como um grande executivo do que como um sujeito forjado nos campos de barro para desfrutar a glória de vestir a camisa do clube de coração.

 

Seu legado é um futebol cada vez mais distanciado da essência comunitária e associativa, a fabricar gerações de torcedores e atletas que mutuamente se desconhecem e, cada um a seu modo, limitam-se aos mesmos raciocínios da vida cotidiana. A glória e o orgulho deram lugar ao status e à ostentação.

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania e colaborador da webrádio Central3.

 

 

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