Correio da Cidadania

Santo Maradona

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Si yo fuera Maradona víviria como él. Este verso do artista e latino-americanista Manu Chao conseguiu traduzir o sentimento com que multidões enxergaram este que foi um dos três ou quatro principais argentinos de todos os tempos.

Maradona foi aquilo que quase todos nós gostaríamos de ter tido a liberdade e a predestinação de ser. Por isso suas paixões, loucuras e excessos sempre soaram compreensíveis.

Os gols inatingíveis que marcamos na imaginação e, uma ou outra vez, nas ruas do bairro ou recreios escolares foram feitos por Maradona nas grandes ocasiões que a vida lhe apresentou. Desde as partidas monumentais em Argentinos Juniors e Boca Juniors até o ponto culminante de sua existência, no mítico estádio Azteca, na partida em que até os argentinos que não se importavam com futebol foram “um punho apertado”, como eternizou a narração de Victor Hugo Morales.

Depois, claro, na Europa, onde fez do mediano Napoli um dos times de futebol mais queridos do mundo e entregou alegrias a seu povo que IDH nenhum pode mensurar.

Sim, ainda que tenha sido um pequeno deus a passar por esta terra, foi um deus conectado a seu tempo histórico. Isto é, foi ícone de um futebol que já passava pelo enquadramento do capital e se tornava ponta de lança da indústria cultural e de entretenimento. Um futebol lamentavelmente eurocêntrico.

E Maradona encarnou o roteiro perfeito do astro pop: um argentino de estirpe não portenha, dos pobres e mestiços, trabalhadores e marginalizados. Com a explosão de cores e imagens permitida pelos anos 80, quando astros como ele já podiam ter todos os seus passos e atos registrados, chegamos à fórmula completa da construção de uma figura arrebatadora.

“Paradoxalmente, Maradona era o maior craque do mundo numa época em que a ciência esportiva tentava fazer do futebol um jogo essencialmente científico, programado e previsível. Ele, com seu show de habilidades, inventividade, imprevisibilidade, plasticidade e efeitos especiais, foi uma resistência ao futebol pragmático”, sintetizou Tostão em sua coluna da Folha.

Ou seja, seu futebol não cabe nas análises mecanizadas que monopolizam o atual debate, praticamente reduzido ao processamento de dados. Portanto não é útil analisá-lo através de números de jogos, gols, títulos, gráficos e mapas de calor.

Maradona soube penetrar as brechas de liberdade e autenticidade que o esporte de então ainda permitiam e hoje quase inexistem. Sua atuação, mesmo involuntariamente, serviu para mostrar que a ditadura de mercado – verdadeiro sistema vigente no planeta – não perdoa os dissidentes.

Tudo isso ficou claro antes mesmo de assumir posições políticas à esquerda, se tratar em Cuba, abraçar a Ilha da Revolução, tatuar Che Guevara e Fidel Castro, pegar o lendário trem para Mar del Plata para a Cúpula das Américas que rechaçou a ALCA e avisou ao mundo que nem todos nós amamos o “livre-mercado”.

E hoje nos perguntamos por que os jogadores são produtinhos enlatados por agentes e, com enorme dificuldade, só agora os atletas brasileiros acordam para questões como o racismo.

Como disse um argentino anônimo entrevistado pela Radio Mitre ontem à tarde: “Obrigado, Diego, por nunca esquecer dos pobres”.

“Jogou como torcemos. Ninguém, nem antes nem depois, levou tanta paixão prum jogo de bola. Obrigado por tanto!”, resumiu de forma luminosa o jornalista e amigo Paulo Junior.

Pois Diego não só jamais esqueceu dos pobres como sempre entendeu perfeitamente o sentimento que emana das arquibancadas e fazem do futebol um afeto tão violento das massas.

Não por acaso é um caso único de ex-jogador que voltou às arquibancadas, fosse na Bombonera de seu Boca, fosse nas partidas da seleção argentina, onde parecia só mais um fanático em meio a massa, sem camisa, cantando, agitando os braços, enlouquecendo.

Não à toa seu povo lhe concedeu o maior salvo conduto de que já tivemos notícia. De Maradona se permitiu tudo, uma lei não escrita.

E como sói acontecer com as mais arrebatadoras paixões, não podiam faltar devaneios e licenças poéticas absurdas, a exemplo de sua nomeação a técnico do último grande time argentino, na Copa de 2010 que terminou com trágica goleada para os alemães e uma equipe terrivelmente negligenciada pelo torcedor que ocupou o cargo de comandante.

Mas simplesmente não importou. Maradona seguiu sendo o principal argentino vivo e seu status de deus não foi alterado em nada. Sua figura já estava consagrada na alma, na cultura e na arte argentinas de forma irrevogável.

A vida seguiu, os anos passaram, Maradona teve uma aventura aqui e ali como técnico, novos relacionamentos depois de sua família ultramidiatizada com Claudia Villafañe, a esposa dos anos de auge, deixou 8 filhos e, quando parecia que tudo estava melhor, um golpe do destino o surpreendeu na casa onde repousava em Tigre. Segundo um médico entrevistado pela Radio Mitre, há uma clara relação com o “grave incidente cardíaco de Punta del Este, em 2000”.

“Quem ama o futebol o ama, mesmo que indiretamente. Só conhecia como defesa, o ataque. Criava vida com seus dribles, que deixaram no chão até a morte inúmeras vezes. Mas todo jogo tem seu fim. Obrigado e descanse em paz, Diego. Inesquecível. Que baque”, escreveu Pedro Buccini, um amigo de arquibancada, em outra síntese precisa do que foi Diego Armando.

Parece que andava tomando antidepressivos ou remédios para insônia. Talvez não tivesse nascido para uma vida de reclusão, tédio e lembranças de glórias passadas num aconchegante quintal com grama e piscina. Só a vida intensa e apaixonada era aceitável.

Seria bom que ficasse mais. Mas sua existência continuará sendo palpável enquanto houver futebol.

Maradó... Maradó...

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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