Correio da Cidadania

Olimpíadas: ‘perdemos a oportunidade de nos mostrar uma sociedade competente’

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A cerca de 20 dias dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, até as autoridades que mais participaram de sua elaboração vieram a público admitir algumas temeridades, em especial na questão da segurança urbana. Para discutir tal aspecto e também fazer um balanço da preparação esportiva brasileira, o Correio entrevistou a psicóloga esportiva Katia Rubio, autora do livro Atletas Olímpicos Brasileiros, que conta a história de quase 1800 atletas nacionais que foram aos jogos, a imensa maioria anônima.

 

“Sabemos que não precisava aparecer o Eduardo Paes para avisar, mas havia um jogo de empurra entre as instâncias federal, estadual e municipal e, ao faltar um mês para os Jogos, ficam evidentes as principais falhas do sistema. Uma vez mais, tentou-se trabalhar com entes internacionais como se fossem nossos vizinhos de portão, acostumados com a desorganização tão escancarada que permeia o Brasil em diversas instâncias”, lamentou.

 

Na entrevista, Katia Rubio, também pesquisadora da USP, esclarece a diferença entre o espetáculo e a cultura esportiva, a fim de ressaltar que os Jogos não necessariamente farão que a população pratique mais esportes em seu dia a dia. A seu ver, o acesso a diversas modalidades continuará restrito a clubes privados, uma vez que apenas um forte investimento na base, através das escolas, poderia formar uma maior quantidade de potenciais atletas.

 

“Em termos de preparação do atleta, é inegável que houve avanço em relação ao passado, em função de todo o dinheiro injetado. Porém, infelizmente, só se cobre a superfície, uma vez que o investimento na base ficou a desejar. A lição que os jogos do Rio de Janeiro deixam é de o país, efetivamente, não querer dar passos maiores que as pernas”, analisou.

 

A entrevista completa com Katia Rubio pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: A um mês dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o Eduardo Paes veio a público e disse que a “segurança está horrível”, enquanto Juca Kfouri afirmou que se não morrer nenhum atleta já se estará no lucro, dentre outras críticas que se generalizam no público sobre a cidade. Diante de tais visões, o que você espera para a realização e condução do megaevento? Estamos diante de situações de risco no período dos jogos?

 

Katia Rubio: Certamente estamos. A questão é o que fazer. Sabemos que não precisava aparecer o Eduardo Paes para avisar, mas havia um jogo de empurra entre as instâncias federal, estadual e municipal e, ao faltar um mês para os Jogos, ficam evidentes as principais falhas do sistema.

 

Torcemos para que nenhum acidente, ou incidente, aconteça e coloque em risco a vida de pessoas que vierem assistir, brasileiros e estrangeiros. E que não aconteça nada com tudo que foi feito atabalhoadamente, em termos de construções e instalações destinadas a dar conta das exigências do COI.

 

Infelizmente, perdemos a oportunidade de nos mostrar para o mundo como uma sociedade competente. É o que mais lamento. Competência não nos falta. O que faltou foi gestão.

 

Correio da Cidadania: Qual o balanço que você faz da preparação estrutural do Brasil para receber os Jogos, considerando a participação de todas as esferas governamentais?

 

Katia Rubio: O processo, lamentavelmente, foi sendo deixado para o dia seguinte, quando se precisava ter planejamento de alto nível há sete anos, desde quando se definiu o Brasil como sede olímpica.

 

Porém, infelizmente, a Matriz de Responsabilidades foi divulgada apenas em 2014, depois da Copa do Mundo, a fim de esclarecer qual ente governamental faria o que. Todo esse conjunto chega em 2016 gritando ao mundo a falta de planejamento e estratégia dos executores e gestores de um evento que não é do Brasil, é do Comitê Olímpico Internacional (COI). O Brasil, na verdade, apenas paga o pedágio para ser o executor de um evento que não é nosso.

 

Uma vez mais, tentou-se trabalhar com entes internacionais como se fossem nossos vizinhos de portão, acostumados com a desorganização tão escancarada que permeia o Brasil em diversas instâncias.

 

Correio da Cidadania: Acredita na ideia do legado físico e estrutural para a população, a exemplo de construções como a Vila Olímpica?

 

Katia Rubio: É importante deixar claro que uma coisa é legado e outra coisa é negócio. A Vila Olímpica foi construída para ser um grande condomínio. A determinação de fazer dela um condomínio já a torna uma construção particular. Legado seria aquilo que é público; privado não é legado, é negócio.

 

No entanto, o que será ou não legado me deixa temorosa de fazer alguma afirmação, porque já vimos, até de outros eventos, o que aconteceu com equipamentos públicos. É muito dinheiro gasto em cima de coisas que não temos condição de confirmar que serão preservadas e, de fato, se tornarem legado.

 

Correio da Cidadania: Dentro das quadras, pistas, piscinas, como você avalia a preparação brasileira ao longo dos últimos anos?

 

Katia Rubio: Em termos de preparação do atleta, é inegável que houve avanço em relação ao passado, em função de todo o dinheiro injetado. Porém, infelizmente, só se cobre a superfície, uma vez que o investimento na base – isto é, aquele contingente de onde podem despontar atletas olímpicos – ficou a desejar.

 

Os atletas olímpicos brasileiros nunca tiveram tanto dinheiro pra promover seus treinamentos como agora e nunca tiveram tantas oportunidades de intercâmbio como agora.

 

Mas não é suficiente. Não dá pra imaginar que por essa razão se faz do atleta brasileiro um medalhista. Na verdade, o que ocorreu nos últimos sete anos foi correr atrás de uma defasagem técnica e de formação pessoal histórica do Brasil.

 

Houve evolução? Sim. Mas não é suficiente para colocarem os atletas brasileiros entre os melhores. São necessárias pelo menos mais duas gerações olímpicas para alcançar tal objetivo. E a partir de uma atuação na base, não no topo.

 

Correio da Cidadania: Já que você destaca o papel da formação de base, acredita que depois dos jogos teremos um país, pelo menos um pouco, mais desenvolvido nas modalidades historicamente relegadas? O que poderia ser feito?

 

Katia Rubio: Em primeiro lugar, deveríamos buscar uma massificação da prática esportiva, que inegavelmente começa na escola. Quando se tem uma boa educação física e motora, a criança tem suas habilidades básicas desenvolvidas para além do interesse da prática esportiva. Quando se tem “analfabetos motores”, em função de as escolas estarem desobrigadas da educação física, fica difícil esperar uma população olímpica, pois o esporte fica realizado nos clubes privados. Ou seja, do jeito que está o esporte continua sendo um privilégio das classes mais favorecidas.

 

Correio da Cidadania: Mesmo diante de tais problemas estruturais, não ficará uma maior “cultura esportiva”, inclusive no aspecto da prática amadora de esportes e sua relação com a saúde e bem estar, ou a oportunidade foi desperdiçada?

 

Katia Rubio: Veja bem, os Jogos Olímpicos nunca foram desencadeador de cultura esportiva. São um evento que acontece durante 19 dias a cada quatro anos. É um evento exatamente por se tratar de uma eventualidade. É falacioso falar que Olimpíadas promovem a prática esportiva. Não. É um espetáculo onde as pessoas sentam para assistir.

 

O legado cultural dos jogos é a possibilidade do desenvolvimento da paixão pelo esporte. Mas entre a paixão e a prática há um grande caminho a ser percorrido. O atleta e a prática esportiva de um grupo tão pequeno como o dos atletas olímpicos são muito mais uma inspiração do que um impulso efetivo à prática esportiva. A prática se fomenta através da educação, e não do espetáculo.

 

Correio da Cidadania: Em sua visão, quais foram os maiores erros e os maiores acertos na organização e preparação do país para os jogos?


Katia Rubio: Não gostaria de colocar como acertos e erros. Mas penso que os governantes brasileiros foram mobilizados muito mais pela emoção que pela razão no pleito aos Jogos Olímpicos. Desejar fazer parte do Conselho de Segurança da ONU não significa ter condições de ser parte deste Conselho. Desejar as Olimpíadas não significa ter condições de realizá-las.

 

A lição que os jogos do Rio de Janeiro deixam é de o país, efetivamente, não querer dar passos maiores que as pernas.

 

Correio da Cidadania: Pra fechar a entrevista, gostaríamos que fizesse um comentário sobre seu livro, uma obra praticamente sem paralelo nas publicações esportivas brasileiras.

 

Katia Rubio: O livro Atletas Olímpicos Brasileiros é fruto de uma pesquisa de 15 anos, na qual eu e minha equipe de trabalho entrevistamos 1796 atletas que participaram da história olímpica brasileira desde 1920 até 2012.

 

As entrevistas contam a história dos Jogos Olímpicos no Brasil pelo olhar do atleta. Mostramos a trajetória, por quais clubes passaram, quais edições participaram.

 

Sem dúvida, é um trabalho inédito, de fôlego olímpico, que tenta mostrar um pouco ao país quem são efetivamente os responsáveis por aquilo que é o esporte olímpico atualmente. Enquanto se fala tanto de estádios, segurança e infraestrutura, pouco se fala de quem realmente construiu a história esportiva brasileira. A função do livro é resgatar a memória esportiva de todos esses atletas.

 

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.


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