Reforma da Previdência fica para 2019 depois de dois anos de insucesso
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- Guilherme Costa Delgado
- 14/11/2018
Se fizéssemos uma contabilidade dos espaços de mídia – rádio, TV, jornais, revistas, internet etc. dedicados no triênio 2016-2018 ao tema Reforma da Previdência, certamente ganharia de todos os outros no quesito divulgação, mas inversamente perderia feio em qualquer avaliação mais rigorosa sobre o critério da informação.
Ao contrário, a divulgação massiva serviu à produção também massiva da desinformação, por várias razões, que conviria prestar atenção. Mas não devemos confundir com as tais campanhas orquestradas de fake-news. Aqui se trata de uma outra pretensão ideológica, qual seja, a de conduzir a cobertura jornalística ao chamado “pensamento único” na abordagem de um tema complexo.
O tema previdenciário é talvez um dos mais difíceis de abordar didaticamente, por motivos diversos: é plurissignificativo, de múltipla abrangência factual no seu objeto, fortemente associado a posições ideológicas ‘a priori’; e ainda contem lógicas simultâneas do mundo da vida e do mundo dos sistemas administrativos. Mirá-lo com uma lente teórica particular é tentação dos ‘especialistas’, mas sua maior complexidade desafia também enfoques teórico-doutrinários restritivos.
Diante de tal situação de complexidade real, há por outro lado uma dupla tentação: legítima, no primeiro caso, de simplificá-lo na comunicação; mas o outro enfoque, de abordá-lo de maneira simplista, banal e maniqueísta, infelizmente a opção preferida por um quase consenso midiático brasileiro na cobertura da PEC 287/2016 (Reforma da Previdência do governo Temer), ora a caminho do arquivo; não confere legitimidade aos meios de comunicação que assim procedem. A derrota da PEC 287/2016 é também uma derrota desse estilo de cobertura midiática. O que virá em 2019, tanto da parte do governo eleito, quanto da cobertura midiática, ainda precisamos observar, sem ilusões.
Por outro lado, se quisermos fazer caminho distinto, qual seja o da informação esclarecedora, começaríamos por identificar as previdências no plural e não a previdência no singular, que são objetos de reforma.
Tratar este assunto no singular já é sinal de desinformação, que pode ser consciente ou não. Isto porque, independentemente das opções ideológicas, os sistemas previdenciários cumprem papeis distintos. Albergá-los numa noção empírica, homogeneizada por uma alguma medida física, é similar à tentação de medir a capacidade estática de armazenamento de gás de uma unidade hospitalar em metros cúbicos, que presta serviço de abastecimento de gás de cozinha, gás combustível e oxigênio terapêutico ao complexo hospitalar, atendendo demandas e finalidades completamente distintas.
Vejamos as diferenças factuais.
Na verdade, há três sistemas previdenciários completamente distintos, com objetivos, públicos destinatários, formas de financiamento, regras de acesso e atendimento muito diferentes.
Para ser didático, sem ser simplista, posso apresentar a questão da seguinte forma:
1) existe a Previdência Social, com regras homogêneas e gerais em todo o Brasil do chamado Regime Geral de Previdência Social e conteúdo normativo constitucionalizado no conceito de Seguridade Social (Arts. 194/196 e 201 da Constituição), inteiramente compatível com o conceito internacional da Convenção 102/1952 da OIT, no tocante ao conceito do atendimentos às situações incapacitantes ao trabalho;
2) existem os chamados Regimes Próprios de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS), relacionados à Administração Pública e às diferentes regras corporativas do Serviço Público nos três Poderes em todos os Entes federativos, com vasta diferenciação de critérios previdenciários (como civis e militares), que nada têm a ver com os critérios da Seguridade Social, nem da Convenção 102/1952 da OIT;
3) existe uma Previdência Complementar Privada, também prevista na Constituição Federal (Art. 202) cuja regulamentação em Leis Complementares específicas que a tipifica na condição de fundo financeiro de capitalização, com contribuição definida, mas benefícios a depender da capitalização no tempo, exclusivamente das contribuições definidas.
Perante um sistema com essa configuração, há necessidades e interesses muito distintos quando se pensa em reformá-lo. E para usar a metáfora da capacidade estática do complexo hospitalar, a única unidade homogênea desses três sistemas é que todos eles disputam o espaço da capacidade estática, no caso os Orçamentos Públicos, para fazer prevalecer suas demandas. E não há como negar que as demandas por gás de cozinha e combustível de automóveis sejam reais e necessárias; mas que não têm a mesma essencialidade do oxigênio terapêutico, isto precisa ficar claro, quando se considera a própria finalidade da instituição hospitalar. Banalizar a discussão, pela medida dos metros cúbicos ocupados pelos diferentes gases no sistema hospitalar, é similar à banalização dos ‘argumentos’ do ajuste fiscal.
Demandas por atendimentos de interesses estratégicos, seja do sistema financeiro, seja de determinadas categorias corporativas do serviço público têm tido enorme evidência nos arranjos de reforma desde a EC. 20/98 (Reforma da Previdência da era FHC), passando pela era Lula-Dilma (Ec. 41/2003, EC 47/2005 e Lei do Fundo de Previdência Complementar dos Servidores Públicos –FUNPRESP). Essas reformas representaram um certo compromisso à convivência dos três sistemas, com certo viés de apelo às demandas do sistema financeiro.
Por sua vez, o RGPS, que é nesse caso o fornecedor de oxigênio terapêutico, apresenta necessidades urgentes de reforma, tendo em vista atender uma crescente demanda de novos pacientes.
Mas no jogo de interesses da economia política, o RGPS aparece como espaço a descartar e a ser preenchido pelo sistema financeiro e/ou da manutenção de certos privilégios corporativos, a exemplo dos militares, que sequer realizam as contribuições idênticas às dos servidores civis.
Diante da situação real dos interesses e das necessidades em disputa, apresentar dados heterogêneos como se fossem de um mesmo fenômeno, não apenas confunde como falsifica e distorce o debate democrático, mas também pode funcionar com sentido invertido para formar convicção sobre o agir político. E ainda mais, se o tema é complexo, a própria falsidade circulante confunde o próprio falsificador, a ponto de converter essa magia comunicativa em peça de divulgação cada vez menos crível.
Guilherme Costa Delgado
Doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.