Correio da Cidadania

Como o governo pensa a Inteligência Artificial

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Créditos: Automação sem Limites

No final do mês de julho, durante a 5ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, o governo federal fez um lançamento importante: o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). A iniciativa visa integrar e acelerar o uso dessa tecnologia em setores estratégicos como saúde, educação e agricultura, mobilizando até R$ 23 bilhões em investimentos. Para falar sobre o tema, Outra Saúde conversou com Henrique Miguel, secretário de Ciência e Tecnologia para Transformação Digital do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Quanto à Saúde, Henrique lembra que as demandas pelo avanço da IA já existem, o que se expressa mais enfaticamente na criação do Meu SUS Digital – plataforma que busca unificar e digitalizar os dados de saúde dos cidadãos brasileiros. Mas vai além disso: “Aplicações mais simples, como a análise de raios-x e exames de imagem como ressonância, tomografia também podem ser feitas com inteligência artificial, como já ocorre. Isso tem um interesse social, porque deixa o sistema de saúde mais rápido. A IA auxilia o médico no diagnóstico e o paciente tem o resultado do exame com acurácia e eficiência maiores”, exemplifica.

Uma das principais ações do PBIA é o investimento em um supercomputador para o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC). Será um dos cinco mais potentes do mundo, destinado a impulsionar pesquisas e iniciativas públicas e privadas no Brasil, equipado com alta capacidade de processamento e alimentado por energias renováveis.

“É um grande sistema que faz o monitoramento, mas também avaliação, mobilização e uso das informações coletadas. Hoje, temos ações em andamentos que são desconectadas. Órgãos que já usam IA, mas não têm interligação. A ação estruturante proposta no PBIA é organizar a conexão entre diversos órgãos e sistemas para que operem de forma coordenada. É como se tivéssemos uma central única de monitoramento, mas virtual, que não precisa estar junta fisicamente, pode operar em rede”, explicou Henrique.

Catástrofes como a do Rio Grande do Sul ou das queimadas que sufocam o país nesses dias são acontecimentos que evidenciam como o Brasil precisa avançar na área. “Cemadem e INPE são as colunas deste sistema”, agrega o secretário. Isso num contexto onde a automatização de diversas funções está apenas no começo e milhões de empregos tendem a desaparecer. É aqui que entra o interesse do setor privado, que também demandará mão de obra qualificada – ou requalificada.

“Este é um trabalho que terá de ser feito conjuntamente pelo MEC, CAPES, CNPq, universidades, institutos federais, sistema S, centros de pesquisa. Precisamos ser capaces de formar um grande contingente de mão de obra, em todas as áreas — não só aquelas tradicionalmente relacionadas à engenharia — para chegarmos a uma nova condição de formar e disponibilizar recursos humanos ao mercado”.Quanto ao menosprezo por avanços tecnológicos com a marca do país, a entrevista serve para ilustrar como a busca por mínima autonomia neste âmbito é praticamente uma obrigação para qualquer país que se pretenda considerar independente: “A principal questão é: o que fazer com os dados da nossa população? Entregar para as big techs? E vamos pagar para elas ficarem com os dados da população? Não queremos competir com outros LLM (Large Language Models, a exemplo do ChatGPT), mas ter um que não só incorpore dados estruturais como também sirva primeiro aos brasileiros. Se não, vamos treinar as ferramentas deles com nossos dados e, na hora de usá-los, eles poderão impor os custos que quiserem”, defende o secretário.

Leia a entrevista completa com Henrique Miguel.

Em primeiro lugar, o que pode dizer a respeito da concepção e objetivos do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial? Com investimentos de até R$ 23 bilhões, podem significar mudança de patamar histórico da ciência na lista de prioridades do Estado brasileiro?


O plano decorre de um pedido direto do presidente Lula, que insistiu junto ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, em especial em sua reunião ordinária de março, com vários representantes da academia, outros ministérios e setor privado. O plano tem a finalidade de atender a demandas que o governo recebe, a partir de encontros e deliberações dentro e fora do país.

Os objetivos são atender demandas e preocupações do campo da ciência, da pesquisa, tecnologia, com vistas a apoiar a regulação e investimentos no setor.
E também avaliar os impactos sociais e econômicos dentro de políticas de governo. O PBIA terá impactos na saúde, educação, trabalho, uma longa lista de questões relacionadas.

Com isso, foi organizado um grupo de trabalho comandado pelo secretário executivo do MCTI, com participação de pessoas de outros ministérios num grupo técnico que desenvolveu diversos temas. Realizamos oficinas de trabalho, interagimos com mais de 400 representantes de diferentes empresas, fizemos reuniões com técnicos de diferentes áreas e elaboramos o plano.

Em síntese, há ações de impacto imediato e cinco eixos de ações estruturantes. No final de julho a proposta de plano foi aprovada na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados e será levada a ministérios. Agora, aguardamos a Casa Civil fazer um decreto a fim de criar a estrutura de gestão e monitoramento.

Em relação à saúde, quais seriam as contribuições do Ministério da Ciência neste governo Lula? Por que poderia estar aí uma das vias de um desenvolvimento econômico e social mais sustentável?

A partir das oficinas, análises da tecnologia e dos impactos identificados, fica claro que algumas áreas, realmente, já estão trabalhando com inteligência artificial. Por isso, as ações de impacto imediato foram identificadas reuniões e até em avaliação conjunta com os órgãos de governo. No setor da saúde, por exemplo, já se tem projetos que utilizam a inteligência artificial, mas tem também algumas questões que foram endereçadas para as ações estruturantes.

Por exemplo, aplicações mais simples, como a análise de raios-x e exames em geral de imagens, como ressonância, tomografia, também podem ser feitas com inteligência artificial, como já ocorre. Isso tem um interesse social, porque deixa o sistema de saúde mais rápido. Com isso, auxilia o médico no diagnóstico e o paciente tem o resultado do exame com acurácia e eficiência maiores. Isso tem um impacto no atendimento dos hospitais, sejam públicos ou privados.

Mas tem questões na área de saúde muito mais amplas, que o Ministério da Saúde, no conjunto de ações estruturantes, delegou ao plano. Algumas já estão em andamento, porque já se vive sob impacto da transformação digital no SUS. Vai do atendimento ou um pré-atendimento que pode ser realizado com inteligência artificial a sistemas que medem alguns parâmetros básicos, operados por pessoas e máquinas, capazes de registrar coisas como o histórico do paciente.

E tem a mais importante das medidas de saúde: a unificação dos dados em saúde, do prontuário de cada brasileiro. O ministério avança no Meu SUS Digital, com prontuário eletrônico inteligente, com dados de cartão de saúde e informações clínicas e biomédicas. Há ainda questões ligadas a atendimento particular e público, dados de apoio a tratamentos de crianças e idosos, que podem ser acompanhados por tais ferramentas. Enfim, certamente o impacto na saúde é grande.

Em quais outros setores estes investimentos devem contribuir mais diretamente?


Na educação, já seremos impactados pela IA em qualquer área de formação e conhecimento. Assim, é necessário incluir nos currículos desde já o conceito e informações sobre IA. Além da educação formal, o aspecto digital tem parte, além da educação formal, em aspectos de capacitação e de qualificação. Treinamento de jovens, de crianças, de adultos. Em todos os níveis de profissionais que já trabalham nas empresas é fundamental, por causa do impacto na inteligência e produtividade do trabalho. Alguns estudos falam entre 20% a 30% de desemprego, ou pelo menos d necessidade de requalificação e de treinamento de profissionais, em razão dos avanços da IA. E sabemos que algumas carreiras e profissões deverão desaparecer devido à inteligência social.

Outra área interessante é a agricultura. Nós temos uma quantidade enorme de dados científicos, que deverão ser, agora, reunidos, melhor consultados e disponibilizados para o pequeno, médio e grande agricultor. O acesso a informações combinando com outras bases de dados, por exemplo, climáticos, será muito importante.

No eixo 3, o PBIA tem impacto na prestação de serviços para o público, a partir de uma reorganização do Estado, com base em disponibilização, compartilhamento, permissão do acesso e recuperabilidade desses dados entre o governo, sociedade civil e cidadãos em geral. Essas são algumas linhas. Tem outras que se descobrirão.

Ao mesmo tempo em que falamos de perda de emprego, tem o impacto da requalificação profissional e recolocação em outras posições. Ou seja, já se incorpora a formação de um trabalhador em sintonia com o uso crescente da IA em sua ocupação.

A crise climática, que se revela civilizatória, noção reforçada pela catástrofe do Rio Grande do Sul e a temporada de queimadas, secas e estiagens do Centro e do Norte do país, não exigem que a referida mudança de patamar de investimentos em CT&I ocorra o mais rapidamente possível? Qual pode ser a dimensão ambiental da IA e dos investimentos no setor?

Essa é uma das questões mais complexas de hoje. Tem um conjunto enorme de dados e informações que se recebe que vão muito além da predição do tempo. Infelizmente, tivemos a tragédia no Rio Grande do Sul, e não era só uma questão climática. Tal projeto passa por diversas ações que vão bem além do MCTI.

Mas nas discussões com o Ministério, as pastas do Meio Ambiente, Cidades, além de órgãos como o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) constroem um sistema de operações de emergência, apto a monitorar impactos no ambiente, não só queimadas, como também chuvas e outros eventos de impacto ambiental. Cemadem e INPE são as colunas deste sistema.

Nesse sentido, o Cemaden inclusive já adquire um supercomputador que terá ferramentas de IA e outras que serão das mais avançadas na previsão climática, além de possuir outras interações. É um grande sistema que faz o monitoramento, mas também avaliação, mobilização e uso das informações coletadas.

Hoje, temos ações em andamentos que são desconectadas. Órgãos que já usam IA, mas não têm interligação. A ação estruturante proposta no PBIA é organizar a conexão entre diversos órgãos e sistemas para que operem de forma coordenada. É como se tivesse uma central única de monitoramento, mas virtual, que não precisa estar junta fisicamente, pode operar em rede.

O que pensa a respeito da crítica que alerta que o investimento em IA deve ser cauteloso em tomar parâmetros de grandes empresas do setor, como Google e Meta, como modelos a ser seguido?

Um dos objetivos do PBIA é autonomia. Quando falamos, por exemplo, da questão das linguagens, os chamados Large Language Models (LLM), desenvolvidos pelas grandes empresas, ouvimos que tais modelos falam português. Não falam. Tem o português brasileiro e o de Portugal. Temos problemas de traduções e adaptações do idioma nativo para o português, e esses sistemas falham em alcançar questões culturais, não incorporam dados e contextos da realidade local, tanto do Brasil como de outros países da América Latina.

Somos um país latino. Apesar da influência europeia e estadunidense, temos uma cultura muito híbrida, um povo com outras origens e características não pensadas por essas empresas que desenvolveram tais modelos. Porque os maiores mercados consumidores de tais produtos são seus próprios países. Por exemplo, programas de identificação facial: eles têm dificuldades reais de identificar pessoas de origem não caucasiana.
Quando se pede para alguma dessas ferramentas descrever ou elencar determinado ambiente que não existe lá fora, não dá certo. Na questão da saúde, posso citar as doenças tropicais. Eles não têm essas referências. Nós lidamos com problemas que em outros países não existem. São dificuldades que as LLM atuais não atendem.

Mas tem um problema: para desenvolver um LLM em português, do zero, com o que temos no Brasil hoje levaríamos de 1 a 2 anos. O ChatGPT foi desenvolvido em menos de um mês. Aí falam “vamos investir, como nós estamos propondo aqui, quase 2 bilhões de reais, para um supercomputador e fazer o que depois de criar nosso próprio um LLM?” Um supercomputador tem um milhão de utilidades.

A principal questão é: o que fazer com os dados da nossa população? Entregar para as big techs? E vamos pagar para elas ficarem com os dados da população? Não queremos competir com outras LLM, mas ter uma que não só incorpore dados estruturais como também sirva primeiro aos brasileiros. Senão, vamos treinar as ferramentas deles com nossos dados e, na hora de usá-los, eles poderão impor os custos que quiserem.

A ministra Luciana Santos afirmou em aula na UFABC que as universidades federais são patrimônio do sistema nacional de ciência e tecnologia. Ao mesmo tempo, vemos frequentes pressões a respeito da contenção orçamentária desta área, amplamente apoiada por uma classe política conservadora e diretamente ligada a modelo econômico focalizado em extrativismo dos recursos naturais. Como lidar com tal contradição, considerando ainda os dilemas e desafios da atualidade, talvez sistematizados com mais ênfase na Agenda 2030 da ONU?

Todas as questões aqui postas, orçamentárias e fiscais, assim como recursos de qualquer atividade do estado, devem ser muito bem elaboradas. Por outro lado, em particular em relação ao PBIA, grande parte dos recursos virá do setor privado, que busca recursos para desenvolvimento de produtos e serviços com IA.

Para desenvolvê-los e incorporar tais tecnologias em produtos e serviços, precisamos treinar recursos humanos, em boa parte advindos do Sistema S, com apoio governamental, que disponibilizará a estrutura universitária, seus centros de pesquisas, Institutos Federais, ETECs, a fim de preparar o corpo técnico necessário. E o setor privado buscará junto à Finep e BNDES os investimentos necessários, em operações reembolsáveis. Uma parte significativa desses recursos, não só para a modernização e atualização da indústria, virá de uma melhor condição de acesso financeiro às empresas. Outra parte significativa, R$ 4,5 a 5 bilhões, virão do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Tais recursos vão permitir, assim, melhorar a estrutura das universidades e centros de pesquisas, assim como a formação e capacitação por intermédio de bolsas em todos os níveis, de graduação, de mestrado, de doutorado. Bolsas para as empresas também. Essa é a parte do plano em que nós teremos de fazer ainda um upgrade, que é a formação e capacitação dos recursos humanos.

No entanto, nas universidades e centros de pesquisa, os recursos da FINEP já liberados vão possibilitar fluxos de recursos continuados que poderão dar retorno em infraestruturas mais modernas. Melhores laboratórios, bolsas para incorporar, requalificar e dar nova formação a pesquisadores e também estímulo à entrada de profissionais que serão formados nessas universidades. Do ponto de vista da tecnologia da informação e comunicação, com a IA, há uma busca nova pelas engenharias e área de exatas. Nos últimos anos, sobraram vagas. Hoje, com o mercado contratando profissionais sequer há tempo para se fazer os cursos adequadamente.

Este é um trabalho que terá de ser conjuntamente feito pelo MEC, CAPES, CNPq, universidades, institutos federais, sistema S, centros de pesquisa, para que consigamos formar um grande contingente de mão de obra, em todas as áreas, não só aquelas tradicionalmente relacionadas à engenharia, para chegarmos a uma nova condição de formar e disponibilizar recursos humanos ao mercado.

Isto é, há um longo caminho para formar a força de trabalho capaz de promover essa transição de padrão tecnológico nas atividades gerais da sociedade.
Nisso, entra um conjunto de iniciativas. Falo de capacitação de uso de IA. Se falamos em nuvem soberana, precisamos de computação, data center e também muita gente especializada, que saiba desenvolver, gerir, atuar sobre uma nuvem soberana. E hoje não há pessoal disponível. Por isso é uma ação estruturante. Dispor de uma nuvem soberana é trabalho que leva de 3 a 5 anos. E se não se faz isso, voltamos ao início: a integração dos nossos dados ficará muito mais difícil e se tais dados estiverem disponíveis na nuvem de uma só empresa, em qualquer momento tal acesso pode ficar complicado em razão de qualquer decisão de seus países de origem, onde tais empresas têm sua sede, que podem cortar o acesso de forma que não possamos fazer nada, a partir de qualquer divergência em política internacional ou coisa assim.

A preocupação da ministra é realmente grande, mas duas ações de 2023 – recomposição do FNDCT e mudança na taxa de financiamento desses empréstimos destinados à inovação, o uso da taxa TR agora aplicados à Finep e BNDES – são as grandes ferramentas para financiar o plano.
Por fim, destaco mais dois aspectos: o PBIA está muito ligado ao plano Nova Indústria Brasil (NIB), de modo que a alavancagem de um cenário futuro para empresas que terão de se basear em transformação digital está muito ligada ao plano. E dentro de suas missões da NIB tem uma oportunidade ímpar para o Brasil: a energia limpa. Tem muita oportunidade de uso de fontes limpas – solar e eólica – de maneira que podemos vislumbrar investimentos externos.

O Brasil passa a ser atrativo para investimentos em data center. Como já fizemos as conexões de alta velocidade com EUA, Europa, América Latina e África, já temos equacionada parte da questão de suas implantações, ainda que precise de ampliação. Pois data center é basicamente equipamento, rede, energia e conexão, com fibra de alta velocidade. Da infraestrutura em si, ela já cuida. Isso não se deve só à IA, tem outros fatores combinados, mas sem dúvidas é um grande meio de alavancar investimentos hoje.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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