2024: interregno prolongado, colapsos e incapacidade de imaginar o mundo além do trabalho
- Detalhes
- Gabriel Brito, da Redação
- 30/12/2024
O ano que se encerra parece confirmar as predições expostas neste jornal em seu alvorecer: as crises de múltiplas dimensões continuariam a se aprofundar a despeito das boas intenções de qualquer governo. Forças centrífugas de um capitalismo em estado permanente de crise, invariavelmente respondida com políticas de desfinanciamento das estruturas que consolidam a democracia no chão social, continuam a tragar sociedades e sistemas políticos representativos. Isso com o mortífero adendo de recrudescimento do colapso ambiental e também de guerras regionais que ameaçam saltar para um novo patamar de confrontações entre blocos de países.
Entrevistado pelo Correio da Cidadania, o sociólogo do trabalho usa a denominação de Antonio Gramsci em sua análise que entraria para a história como síntese do entreguerras e da grande crise de 1929: interregno. Isso porque a rigor o mundo ainda não saiu da crise econômica causada pelo estouro da bolha do mercado financeiro e imobiliário dos EUA em 2009. No entanto, nenhuma das grandes revoltas sociais que atravessaram diversos países desde então conseguiu se traduzir num projeto político e econômico de ruptura com a ordem responsável por esta mesma crise.
“A reeleição do Trump é uma demonstração, num contexto em que nós temos um processo de médio prazo que já se desenvolve há muitos anos e acrescenta, por assim dizer, um elemento fundamental para compreendermos o ano de 2024 num contexto mais amplo, que é a crise final da hegemonia dos Estados Unidos. Estamos em um momento histórico em que o poder inconteste dos Estados Unidos, desde o fim da Guerra Fria, passa pelo seu momento mais claramente crepuscular”, situou.
Braga se apoia na vitória do Partido Republicano como exemplo máximo do giro em falso do qual não conseguem sair os sistemas políticos ditos democráticos. Revezam-se governos tidos como de esquerda ou direita em administrações que na essência se submetem às ordens de um capital cuja hegemonia política é cada vez mais destrutiva e impermeável a demandas sociais transformadoras. O que, em sua visão, leva a um processo de autocratização das democracias.
Os ciclos políticos se repetem à exaustão: enquanto o capital impôs uma reorientação produtiva e gerencial da economia no pós-2008, com notório reflexo nas relações sociais e produtivas, governos progressistas realizam administrações com leves melhorias na vida material dos trabalhadores. No entanto, tais avanços não são capazes de apagar a sensação de mal estar, dado o nível de superexploração do trabalho e aumento insuportável do custo de vida que acompanha essas tímidas conquistas. É o que explica a derrota de Joe Biden/Kamala Harris nas eleições dos EUA e também sinaliza os limites e perigos a rondar o governo Lula.
“A inflação acumulada durante o governo Biden foi mais de 20%, o que impacta severamente o padrão de vida da classe trabalhadora que depende do carro para se deslocar para trabalhar. E hoje muitos trabalhadores moram cada dia mais distantes dos seus locais de trabalho porque a inflação de aluguéis aumentou muito nos últimos anos e isso erodiu sua capacidade de compra. O salário mínimo norte-americano em escala nacional é 7,25 dólares/hora e está congelado desde 2009”, afirmou Ruy Braga.
Isso explica, em sua análise, porque as leves melhoras estatísticas na economia e fatores associados são insuficientes para estabilizar os governos que a realizaram. Não há colchão social suficiente para acomodar anseios das classes trabalhadoras e suas necessidades de reprodução social. Ao mesmo tempo, este imenso conjunto formado pelas pessoas que vivem do próprio trabalho sofreu profundas transformações de identidades e subjetividades no pós-2008, o que explica a popularidade de figuras como Trump e, no Brasil mais recentemente, Pablo Marçal.
“As desigualdades de renda nos Estados Unidos aumentaram exponencialmente na última década e meia e não apresentam sinais de reversão. Foi neste contexto que se apresentou um candidato prometendo proteger trabalhadores. E Trump conseguiu o voto dos jovens trabalhadores racializados nos Estados Unidos nos centros urbanos, porque, por exemplo, a inflação de aluguéis nas principais cidades do país nos últimos três anos foi mais de 40%. Isso atinge diretamente esses jovens trabalhadores que não têm casa própria”, completou.
Mas como alerta Ruy Braga, e mostram os processos políticos já vivenciados nos próprios EUA ou no Brasil sob Bolsonaro, as direitas radicais não cumprem o que prometem. Pelo contrário, apenas aprofundam as contradições dos sistemas que alegam querer mudar e, consequentemente, o “mal estar da civilização”, para usar o termo profeticamente cunhado por Sigmund Freud em seu ensaio também do entreguerras – naquele caso, a analisar a “neurose coletiva” gerada pela transição de um mundo que saía dos absolutismos e da influência da religião para as promessas da modernidade e uma vida mais plena a partir da supremacia da técnica e da razão (que no entanto não cumpriam suas promessas emancipatórias).
Para Ruy Braga, o momento histórico exige a elaboração de novos imaginários de mundo, tarefa que vem sendo negligenciada pelas esquerdas e leva as massas ao abraço de afogado no discurso ilusório do empreendedorismo individual com o qual as direitas se validam politicamente. Mas, como explicitado no Brasil pelo movimento Vida Além do Trabalho, há terreno fértil para se avançar na elaboração de uma nova sociabilidade.
“Quando se critica a escala 6x1, a rigor, o que está se coloca em pauta consiste no problema da distribuição do trabalho, quem vai fazer o quê e em quanto tempo, a apropriação do tempo de trabalho excedente pelos proprietários dos meios de produção... É uma questão que molda a vida das pessoas (...) Nós nos especializamos, na esquerda, em discutir políticas públicas, em negociação de benefícios contratuais. Claro que é importante. No entanto, as discussões de fundo a respeito da distribuição do tempo de trabalho desapareceram do horizonte de intervenção política”.
Confira a entrevista completa com Ruy Braga a seguir.
Correio da Cidadania: Que síntese você faria deste ano de 2024, em sentido mais conjuntural e global, um ano de continuidade de crises que avançam de uma forma que parece irresistível nos países, sociedades e sistemas políticos e fóruns multilaterais variados? Mais dramaticamente, uma crise que se expressa na incapacidade de se organizar qualquer bloqueio sério a um colapso climático, o que no Brasil se manifestou com força talvez inédita?
Ruy Braga: Foi mais um ano desse nosso período de interregno, como eu costumo designar. Esse interregno começa em 2008 com o colapso do mercado financeiro das subprimes nos Estados Unidos, se expande para a Europa, desacelera a economia chinesa, atinge após alguns anos economias como a brasileira, no que se seguem crises políticas em sociedades nacionais. A crise econômica tem a ver fundamentalmente com a desaceleração e a desarticulação daquilo que se tinha por certo: a globalização neoliberal, ou seja, a integração dos sistemas produtivos globais, a liberdade de fluxos financeiros, hegemonia das formas do capital financeiro, em especial suas formas de imposição sobre os governos. A crise que se estabelece a partir de 2008 marca um momento de inflexão que nem repete o passado, ou seja, não aprofunda o processo de crise de globalização, nem oferece um delineamento mais preciso a respeito de qual vai ser a nova ordem.
Vem daí a ideia de interregno, ou seja, um momento de desarticulação que não é claro nos seus contornos fundamentais do momento vindouro. Alguns falam num grande recuo, alguns falam num processo em que a sociedade nacional assumiria o comando, governos nacionais se tornariam mais fortes e atuantes, mas, a rigor, vivemos um momento híbrido, em que muitas tendências conflitantes se chocam e a resultante ainda não é claramente delineada como uma ordem estável. Eis a situação global, por exemplo, através dos cenários eleitorais, nos quais numa eleição é ganha por um partido com uma orientação política para a esquerda, sucedida por outra vencida por uma orientação política de direita. Isso revela uma flagrante instabilidade e incerteza.
Tal momento também me parece produto de dois períodos muito distintos que se seguem à crise de 2008. A primeira metade dos anos 2010 foi um período marcado por um flagrante avanço de lutas de classes em especial balizadas por insurgências nacionais plebeias com uma pauta política reformista, enfrentada e seguida por um momento contrarreformista que solapa, enfim, as pautas e erode a capacidade dos agentes políticos de responder a contento as demandas das massas insurgentes que se multiplicam, mas que terminaram, ao fim e ao cabo, com uma enorme frustração, tendo em vista o fato de que os governos não recuam das suas políticas austeritárias.
Este conjunto de fatores gera uma crise política muito profunda em escala global, que abre o caminho para alternativas, grosso modo, que gravitam em torno da extrema direita, alternativas nacionalistas autoritárias, que apontam para uma onda de autocratização que se espalha mundo afora. Evidentemente, nós sabemos que a eleição do Trump, em 2016, foi o grande marco desse período. Essa eleição reverberou no mundo todo e fortaleceu projetos políticos nacionalistas e autoritários em diferentes países e contextos: Erdogan na Turquia, Narendra Modi na Índia, Viktor Orban na Hungria, Jair Bolsonaro no Brasil, mais recentemente Milei na Argentina. Enfim, uma multiplicação de exemplos, em especial com na Europa com fortalecimento da extrema-direita.
O momento expressa insegurança, incerteza e instabilidade características desse período de interregno que se abre com a crise de 2008.
Correio da Cidadania: E que agora aponta para um aprofundamento de sentido destrutivo, uma vez que as revoltas sociais plebeias deste período analisado não foram capazes de mudar as orientações essenciais dos Estados nacionais.
Ruy Braga: A reeleição do Trump é uma demonstração, num contexto em que nós temos um processo de médio prazo que já se desenvolve há muitos anos e acrescenta, por assim dizer, um elemento fundamental para compreendermos o ano de 2024 num contexto mais amplo, que é a crise final da hegemonia dos Estados Unidos. Estamos em um momento histórico em que o poder inconteste dos Estados Unidos, desde o fim da Guerra Fria, passa pelo seu momento mais claramente crepuscular.
Isso se reflete no avanço da China, na própria posição hegemônica do dólar e seu poder de ser a divisa por excelência de trocas internacionais, do dinheiro universal. Agora isso é contestado, mais recentemente com a iniciativa dos BRICS de substituir o dólar por algum tipo de dinheiro de troca internacional, que viabilizaria a troca entre os países membros do bloco. São sinais muito claros que apontam para uma crise praticamente terminal da hegemonia norte-americana num cenário de aprofundamento de guerras, de crises, enfim, de incertezas em escala global. A própria conjuntura da Ucrânia e da Palestina revela um pouco da decadência da influência do poder dos Estados Unidos naquilo que era dado como certo a respeito de sua hegemonia política mundial.
É interessante notar que quando se pensa no papel que os EUA e sua economia cumprem desde o pós-segunda guerra mundial, nunca houve uma sensação de ameaça no que diz respeito à concorrência econômica. Os Estados Unidos sempre foram um país que não necessariamente se opunha a projetos de industrialização de outros países, regiões e continentes. Os EUA não se opuseram à industrialização da América Latina, notoriamente Brasil e Argentina. Eles também não se opuseram à industrialização de Índia, Coreia do Sul, Japão etc. No entanto, eles sempre reagiram de forma muito brutal às contestações políticas daquilo que significaria o colapso de um apelo relativo a seu prestígio e influência política mundial. O que se percebe hoje em dia é que a economia norte-americana se sente ameaçada pela China, o que se refletiu no apelo político de Donald Trump, que se dispõe a recuperar e restaurar o Make America Great Again (MAGA), uma ideia-força que representa o prestígio perdido.
São indícios e sinais claros do que podemos chamar de crise terminal da hegemonia norte-americana. É claro que tem impacto no mundo todo. E nós devemos ter clareza de que tal decadência da influência do poder norte-americano mundo afora acrescenta um elemento de flagrante indeterminação deste interregno.
Correio da Cidadania: De toda forma, tal passagem de bastão da hegemonia global já vinha sendo vislumbrada há muitos anos, num entendimento mais amplificado das tendências de longo prazo que se manifestavam, até pela mudança das dinâmicas de relações globais, comerciais e produtivas. Em suma, já se via impossível a manutenção de tamanha hegemonia dos Estados Unidos frente à China e outros mercados. O que talvez não se previa de forma taxativa é que tal momento de perda de hegemonia fosse tão traumático e violento, a exemplo do que se vê na barbárie absoluta sobre Gaza e o povo palestino, enquanto na Síria o Estado Nacional parece desaparecer, além da própria invasão da Ucrânia pela Rússia. Ainda neste sentido, a recepção à vitória eleitoral de Trump pelas direitas ditas “democráticas”, “moderadas”, “cosmopolitas” não pareceu mais amena do que em 2016, o que sugere uma naturalização da busca de saídas autoritárias pelo capital e seus representantes?
Ruy Braga: No caso norte-americano, o avanço da extrema-direita está muito associado à figura do Donald Trump e sua liderança no Partido Republicano. Trump sequestra o Partido Republicano por meio da sua liderança, mas ele próprio expressa um avanço do ativismo nas bases do partido republicano, que não era um ativismo tradicional. Nós não devemos nos esquecer de que Trump e a emergência da sua liderança ocorre no contexto do avanço do Tea Party nos Estados Unidos (fração ultraconservadora do Partido Republicano), que era um fenômeno de base.
Precisamos tentar compreender quando se trata da questão do avanço da extrema direita nos Estados Unidos, mas também no Brasil, na França, na Alemanha, e assim sucessivamente. Tem a ver com o que representam tais lideranças políticas nacionalistas autoritárias, filo-fascistas, num contexto de brutal desarticulação e crise sociorreprodutiva, instalada em escala nacional.
A campanha do Trump nesta última eleição é exemplo. Foi muito hábil em se apresentar ao grande público, em especial àqueles setores tradicionalmente muito céticos e que não votavam no Partido Republicano, como um candidato protetor da classe trabalhadora norte-americana. Isso tem um peso. Eles foram bem-sucedidos nesse projeto. Se observamos a campanha, vamos perceber que ele prometeu a construção de 2 mil km de muro na fronteira com o México para dificultar a entrada de imigrantes. Isso está muito associado às suas promessas de extradição em massa dos indocumentados, que geram uma enorme concorrência no mundo do trabalho. Também fala do muro tarifário contra a China ao taxar 100% a importação de seus produtos e agora está ameaçando taxar em mais de 30% a importação dos produtos da Europa, do Brasil e de outros lugares. Essas duas promessas revelam uma mensagem política muito claramente associada à proteção da classe trabalhadora dos EUA, dos seus postos de trabalho, das suas condições de vida e reprodução social.
É claro que a solução que ele propõe vai gerar muito mais problemas, que no final das contas não irão de fato proteger a classe trabalhadora de seu país. Ele não vai cumprir com as promessas, até porque o trabalho indocumentado nos Estados Unidos deve chegar a 10 milhões de pessoas segundo estimativas do próprio governo, no fim das contas um montante pequeno frente ao tamanho do país. Ao mesmo tempo, a construção de um muro tarifário contra a China só vai aumentar a pressão sobre os preços internos nos Estados Unidos, pois quem paga as tarifas são os consumidores. Isso tem potencial de gerar mais inflação. O ponto é que sua mensagem foi simples e clara, conseguiu seduzir a maioria do eleitorado e fazer com que as pessoas se mobilizassem para votar nele.
Correio da Cidadania: Portanto, a vitória de Trump teria explicações muito mais materialistas do que sugerem as análises que colocam “guerras culturais” e “identitarismos” no topo das explicações?
Ruy Braga: O que explica, de fato, a vitória do Trump não é o eleitorado supostamente branco, racista, misógino e todos aqueles rótulos que se colaram sobre seus eleitores. Em última instância, sua vitória popular se dá entre jovens trabalhadores, latinos e negros, moradores dos grandes centros urbanos, exatamente aquilo que o Partido Republicano não tinha como público votante. E aí vai um recado importante para o governo brasileiro e outros: apesar do discurso de analistas políticos de que a economia ia muito bem nos Estados Unidos, nunca se teve tantos empregos, inflação sob controle, crescimento econômico vibrante e assim por diante, ou seja, aquele discurso do “já ganhou porque está tudo indo bem e não vai se mudar o governo”, não teve capilaridade na sociedade norte-americana por boas razões.
A primeira delas é que a inflação acumulada durante o governo Biden foi mais de 20%. Ela já vinha numa alta no governo anterior de Trump, mas com Biden foi impulsionada pela elevação dos preços dos combustíveis, o que impacta severamente o padrão de vida da classe trabalhadora que depende do carro para se deslocar para trabalhar. E hoje muitos trabalhadores moram cada dia mais distantes dos seus locais de trabalho porque a inflação de aluguéis aumentou muito nos últimos anos e isso erodiu sua capacidade de compra, pois os salários permanecem estagnados ou declinantes. O salário mínimo norte-americano em escala nacional é 7,25 dólares/hora e está congelado desde 2009.
As desigualdades de renda nos Estados Unidos aumentaram exponencialmente na última década e meia e não apresentam sinais de reversão. Fica evidente que as condições propriamente econômicas de produção e reprodução da classe trabalhadora foram se erodindo, se desgastando e degradando sem uma perspectiva de reversão no futuro próximo. Foi neste contexto que se apresentou um candidato prometendo proteger trabalhadores. E ele conseguiu o voto dos jovens trabalhadores racializados nos Estados Unidos nos centros urbanos, porque, por exemplo, a inflação de aluguéis nas principais cidades do país nos últimos três anos foi mais de 40%. Isso atinge diretamente esses jovens trabalhadores que não têm casa própria.
Portanto, há uma série de questões que nos ajudam a pensar a realidade brasileira, no momento em que se comemoram taxas de emprego muito baixas e uma diminuição, comemorada por lideranças do PT, de diminuição do número de jovens trabalhadores entre 15 e 29 anos que nem estudam, nem trabalham (em torno de 21% neste ano, frente a 22, 23% no ano passado). São indícios de que estamos a andar de lado. Não significa uma melhora efetiva nas condições de vida dos trabalhadores, em especial dos jovens trabalhadores.
Correio da Cidadania: Isto é, o “mal estar da nossa civilização” continua intacto, ainda que as estatísticas mostrem leves melhoras. No entanto, são melhores relativamente muito baixas frente ao nível de exploração do trabalho dessa jovem classe trabalhadora.
Ruy Braga: Em 2015, 2016 com a crise do impeachment e a reforma trabalhista impulsionada e aprovada durante o governo de Michel Temer, nós tivemos uma forte desarticulação e desorganização do mercado de trabalho no Brasil, com um flagrante aumento das taxas de informalidade e ao mesmo tempo a transformação do contrato intermitente como forma privilegiada de contratação das empresas. Isso revelou uma realidade na qual, mesmo que tenhamos uma multiplicação muito grande de empregos, são empregos que pagam mal, exigem jornadas muito longas, colocam condições de trabalho degradantes, submetem ao despotismo gerencial... Ou seja, são postos de trabalho geralmente não qualificados ou semiqualificados que não garantem uma solução crível, pelo menos no médio prazo, para a crise sociorreprodutiva em que a sociedade brasileira está imersa desde 2015.
Nós precisamos considerar tais elementos. Mesmo que aparentemente os números sejam positivos, na realidade, ao fim e ao cabo, o que nós temos é uma espécie de crise que se dilata, uma crise que se reproduz indefinidamente. E essa crise é das condições sociais de reprodução da classe trabalhadora, atinge as famílias, atinge as comunidades e seu modo de vida. Toda essa desarticulação do modo de vida da classe trabalhadora no sentido amplo, mais tradicional, é o que está impulsionando o voto popular à direita. Haja vista, por exemplo, o fenômeno que marcou a política este ano no Brasil, Pablo Marçal. Devemos ficar muito atentos.
Eu diria que o exemplo norte-americano nos ajuda a pensar os limites e os alcances da política implementada pelo governo federal no Brasil.
Correio da Cidadania: Além disso, falamos de uma classe trabalhadora cuja subjetividade e sua própria, digamos assim, autoconsideração em relação ao seu lugar no mundo é diferente da classe trabalhadora de outras gerações. Pablo Marçal e o perfil de trabalhadores que o apoiou, individualizados e fragmentados no seu próprio cotidiano de produção e circulação teriam simbolizado isso de forma didática?
Ruy Braga: São questões absolutamente centrais. Novamente, vejo uma manifestação desse interregno, que tem a ver exatamente com a desconstrução das identidades coletivas dos trabalhadores, muito radical, notável e proeminente desde a crise de 2008 e que teve efeito sobre o nível da consciência de massas desses trabalhadores.
Antes, havia uma classe trabalhadora organizada em torno de coletivos fabris ou mesmo de grandes grupos de trabalhadores contratados por empresas, muitas delas multinacionais. Tais trabalhadores tinham algum nível de representação sindical, poder de negociação com essas empresas. Havia formação de comunidades de trabalhadores em torno desses núcleos fabris e uma capilaridade do modo de vida operário, que garantia ou ao menos apontava para um horizonte de inserção da juventude, no qual a geração posterior tinha ganhos salariais e materiais melhores do que a geração anterior e assim sucessivamente.
O modo de vida operário e a identidade coletiva mais associada às práticas de mobilização ligadas ao mundo do trabalho e coisa do gênero erodiram. E no seu lugar, o que nós observamos hoje em dia passa muito mais por uma profunda fragmentação das identidades de classe que se reaglutinam e rearticulam em torno de narrativas e discursos mobilizadores de comunidades religiosas, liderança de pastores; fundamentalmente, se baseia na relação com aplicativos, que na verdade são empresas de tecnologia globais. Enfim, um mundo do trabalho muito mais fragmentado, muito mais individualizado, muito mais atravessado por essas identidades religiosas. A rigor, tais trabalhadores ou são refratários a discursos de mobilização coletiva tradicionais de esquerda ou são indiferentes, não reagem, não respondem a esses discursos de natureza mais tradicional da esquerda, que envolve, por exemplo, sindicatos e pautas ou agendas progressistas.
Assim, eu diria que o grande desafio desse momento de interregno passa muito pela reconstrução de identidades coletivas dos trabalhadores que tenham no seu horizonte um projeto político emancipatório, um projeto político que transforme, de fato, a vida dessas comunidades da sociedade brasileira como um todo, porque o que nós estamos vendo na realidade é o avesso, isto é, a aproximação desses trabalhadores, muitos deles informais, de aplicativos, que se organizam coletivamente em comunidades religiosas e são mobilizados pelos conservadores, do ponto de vista dos costumes. Isso passa pela liderança de igrejas evangélicas, principalmente de carisma pentecostal e tais trabalhadores se aglutinam, votam e decidem escolher um representante político como Pablo Marçal, que é um pouco a síntese disso tudo.
O Marçal é uma figura interessante, entre outros fatores, por conta disso. Ele é uma espécie de síntese de todas essas tendências. A tendência, por exemplo, de estímulo ao empreendedorismo popular por necessidade, chamado empreendedorismo de si mesmo, como resultado da desarticulação radical do mercado de trabalho, das políticas de proteção das próprias empresas, o chamado bem-estar privado das empresas e suas políticas de carreira. A desarticulação disso tudo resulta exatamente no fortalecimento dos discursos empreendedoristas, porque a rigor é o último refúgio.
Correio da Cidadania: Ou seja, de pouco tem adiantado aos projetos políticos progressistas a conquista de resultados socioeconômicos um pouco melhores que seus concorrentes de direita, pois isso simplesmente não bloqueia o avanço dessas novas identidades do mundo do trabalho.
Ruy Braga: O trabalhador, por exemplo, quando observa o emprego que teve de carteira assinada, ganhando 1,5 salário mínimo, geralmente um trabalhador terceirizado sujeito ao despotismo gerencial, à violência do chefe, sem nenhum tipo de força e benefício, praticamente sem representação sindical, obrigado a bater cartão, faz uma análise e, quando fica desempregado na crise de 2015-16, conclui: “é melhor eu trabalhar pra mim mesmo”. E diante do aumento da informalidade, do subemprego e assim por diante, ele não tem opção. Portanto, o fortalecimento do discurso do empreendedorismo no meio popular é uma tendência praticamente irreversível se consideradas as condições do mercado de trabalho atual.
Quanto ao Pablo Marçal, ele é uma figura identificada com a religiosidade pentecostal, essa nova onda de evangelização que atravessa o país. Ele próprio se diz evangélico, frequenta igrejas, muitos dos seus discursos e práticas empresariais se realizam em contextos religiosos. Ele também é uma síntese porque essa massa plebeia desarticulada, sem apresentação sindical, fragmentada, competindo entre si por oportunidades no mercado informal de trabalho, mobilizada por aplicativos dependentes do seu próprio esforço, enfim, sensíveis e permeáveis ao discurso do empreendedorismo popular por necessidade, empreendedorismo de si mesmo, acessa essas redes religiosas nas periferias, que é onde avança, de fato, a igreja evangélica nos grandes centros urbanos. Mesmo que o trabalhador não tenha tempo de participar da igreja, sua família participa, os seus filhos participam, essa massa é, de alguma forma, organizada pelas igrejas enquanto foi desorganizada pelo mercado de trabalho e pelas empresas.
Portanto, existe uma conexão muito forte, uma espécie de relação de afinidade eletiva entre o neopentecostalismo e neoliberalismo no mercado de trabalho no país e no mundo. Essa conexão é feita. E Marçal faz uma outra síntese, que é a hegemonia da rede social, nova forma de comunicação que tem muito a ver com a maneira como tais redes se capilarizam na vida das pessoas, mobilizam paixões e circulam os afetos. Tudo isso advém da dinâmica dos algoritmos, da formação das bolhas, do culto narcísico da autoexposição nas redes e do hiper-individualismo. Isso tudo faz com que um fenômeno político como o Pablo Marçal seja uma espécie de síntese de tais grandes tendências, que têm alterado profundamente a sociedade, o tecido social no país, num contexto de interregno e de flagrante desconstrução de identidades coletivas passadas, antes mais associadas à política de esquerda e centro-esquerda, que agora têm suas possibilidades de intervenção mais estreitas.
Por sua vez, essas mesmas esquerdas lidam muito mal com a nova realidade, estão muito presas a dinâmicas do passado. E o próprio PT, o Lula, enfim, são uma representação dessa inconsistência da política de esquerda frente a um mundo do trabalho delineado pela convergência entre neoliberalismo, neopentecostalismo e redes sociais.
Correio da Cidadania: De maneira que se voltar às batalhas ideológicas as esquerdas estariam fadadas a fazer governos capazes de apresentar leves melhorias, mas, contraditoriamente, aplanar o terreno para o avanço de um projeto social, político e econômico que só pode ser liderado pelas direitas? Por exemplo, é possível apresentar um projeto político progressista a esta altura da história sem colocar a questão ambiental no centro?
Ruy Braga: Não, claro que não. E sinceramente, a despeito de todo o discurso, eu duvido muito que os governos do PT estejam muito engajados na pauta ambiental. A esquerda hoje tem um discurso voltado para o passado. Obviamente, é inegável que houve um avanço, comparativamente falando, em relação ao governo Bolsonaro, que era um governo flagrantemente de destruição ambiental, até orientado por essa ideia. Mas não é um governo que coloca o meio ambiente no centro da agenda política. Faz uma celebração de tais discursos em certos espaços institucionais, mas não é um governo que pensa tal questão sistemicamente dentro das suas práticas e dos ministérios, haja vista, por exemplo, a ideia da prospecção de petróleo na Foz do Amazonas. A impressão que eu tenho é de um governo pragmático, como sempre foram os governos petistas, e que vai incorporar essa pauta conforme sua avaliação oportunista, não como algo que prepare os partidos e movimentos sociais para o futuro.
Correio da Cidadania: Quanto a “pautas de futuro”, chamou a atenção o movimento Vida Além do Trabalho, que luta pelo fim da jornada 6x1. Curiosamente, não parece ter ocorrido uma recepção tão calorosa das esquerdas tradicionais a esse movimento, um movimento de novo tipo organizativo. A isso se soma uma pauta também de novo tipo, isto é, de retirada da centralidade do trabalho do projeto político e até existencial destes trabalhadores, o que era um ponto forte das esquerdas que conseguiram promover maiores transformações na sociedade, através de pautas de trabalho digno e bem estar social. Em suma, não te parece faltar uma compreensão mais profunda das novas subjetividades do mundo do trabalho por parte do espectro político que se diz interessado em representá-lo?
Ruy Braga: Sem dúvida existem tais fatores e o movimento Vida Além do Trabalho, como se vê pela repercussão que teve nas redes sociais, trouxe uma questão central, que é combater a redução da vida humana ao tempo de trabalho, a colonização do tempo de vida pelo tempo de trabalho. Sobretudo, trata-se do direito de lazer, de convívio familiar, o direito de você ter uma vida comunitária, descanso etc. Esta é uma pauta universal da classe trabalhadora, independentemente das suas orientações ideológicas, de direita, esquerda, centro, enfim, porque é algo que atinge a vida da família e comunidade trabalhadora.
E quando se critica a escala 6x1, a rigor, na realidade, o que está se colocando em pauta consiste exatamente no problema da distribuição do trabalho pelos setores da sociedade, quem vai fazer o quê e em quanto tempo, a redistribuição do trabalho necessário entre os trabalhadores, a apropriação do tempo de trabalho excedente pelos proprietários dos meios de produção... Não se fala mais de tudo isso há muitas décadas, no Brasil e no mundo. E é uma questão que molda a vida das pessoas. O problema da distribuição do trabalho, o excedente, o necessário, enfim, o problema da jornada de trabalho, do direito à vida além do trabalho são questões que moldam o dia a dia da classe trabalhadora em seu todo.
Nós nos especializamos, na esquerda, em discutir políticas públicas que têm, por exemplo, impacto sobre a mitigação da desigualdade de renda. Nós nos especializamos em negociação de contrato coletivo, em negociação de benefícios contratuais. Claro que é importante. No entanto, as discussões de fundo a respeito da distribuição do tempo de trabalho desapareceram do horizonte de intervenção política.
E o que um fenômeno social, de rede social sobretudo, mas um fenômeno político importante como o Vida Além do Trabalho mostra é que existe um enorme espaço para a esquerda fazer política para além da sua visão tradicional da política pública focalizada, para além da visão tradicional dos primeiros negociadores coletivos, para além da visão tradicional da ação do sindicato, para além da visão tradicional do discurso de mobilização política dos trabalhadores em torno do salário. É fundamental perceber tais nuances pois há, sim, espaço para o crescimento de um projeto político de esquerda nas atuais condições de vida da classe trabalhadora. E esse espaço não é aproveitado por absoluta falta de imaginação política das nossas lideranças.
Vivemos um momento que sobrepõe inúmeras crises: econômica, política, ambiental, reprodutiva... Isso tudo nos obriga a pensar a política, a conjuntura, a estrutura, a sociedade em categorias novas. Mas não é o que se observa na ação das nossas lideranças.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.