Rancores siameses
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- Justino de Sousa Junior
- 09/12/2015
Antes que nos acusem de contribuir com as movimentações da direita por insistir em análises críticas aos governos petistas, explicamos que a questão que mais importa na quadra iniciada em 2002 é justamente a análise do projeto sociopolítico adotado pelos governos petistas e dos desafios para a construção de alternativas anticapitalistas. E, neste sentido, nosso entendimento é de que, em última análise, aqueles governos trabalharam contra os sujeitos e os projetos anticapitalistas. Por isso, ou seja, por entender que os governos petistas não se posicionaram em nenhuma causa fundamental ao lado dos explorados, muito ao contrário, trabalharam para negar os antagonismos sociais e posicionaram-se sempre a favor da ordem burguesa, não encontramos razão para sair às ruas em defesa desses governos.
Isto posto, contudo, afirmamos o posicionamento contrário ao pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, simplesmente porque não há consistência nele. E não o fazemos em nome da ordem, da legalidade, das instituições, valores que na história brasileira quase sempre serviram para legitimar a dominação e as profundas desigualdades sociais; acreditamos que governos corruptos podem e devem ser derrubados pelo poder popular.
Não endossamos esse processo porque no caso atual trata-se apenas de uma manobra de setores conservadores, tão corruptos quanto todos os demais partidos da ordem e que não conseguiram comprovar a ligação direta, factual entre a presidente e os escândalos realmente existentes em vários setores da administração pública federal. Defendemos ainda que as investigações sejam levadas a cabo contra todos e que a pressão popular ponha na berlinda todos os corruptos e corruptores – políticos e grande burguesia – e seu sistema político.
Este texto, então, recusa-se ao mero debate entre o sim e o não ao impeachment da presidente Dilma Rousseff que é como se a opinião tivesse apenas que optar entre o inseto e o inseticida (1) ou a simplesmente ter que defender um governo que se reclama de esquerda, mas que implementa o mesmo programa exacerbadamente conservador de “ajustes” econômicos antipopulares que seus opositores implementam quando ocupam postos de comando.
* * *
Um Cunha é um Cunha sem mais, sem menos. Cunhas de ontem, Cunhas de hoje, desde a Primeira Missa são exatamente isto que está aí. Os Cunhas entram e saem, comandam, revezam-se fazendo aquilo que se destinou como ofício aos Cunhas. Todos sabemos o que pensa, como age, a quem representa um Cunha. PSDB, PMDB, Democratas e que tais, agremiações que abrigam tantos Cunhas, partidos que são as casas dos Cunhas também são velhos conhecidos. Suas peripécias e presepadas nós já cansamos de assistir, de tudo já fizeram, menos beijar na boca – são profissionais! As impressões digitais dos Cunhas estão por toda parte: no Congresso, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais, nos governos federal, municipais, estaduais, nas estatais, nos tribunais. Enfim, assim como nos falam os compositores populares uma maçã é uma maçã é uma maçã é uma maçã (2), um velhaco é um velhaco, é um velhaco é um velhaco.
Porém, se aquela personagem é a expressão fiel da tão conhecida alma Paraguaçu do político brasileiro da gema, o que ainda não pudemos digerir e aceitar, embora venhamos criticando o processo desde sua gestação, é o modo como a esquerda do governo incorporou não só os ternos, mas também os termos da política dos Cunhas, tornando-se parceira, cúmplice, conivente, formando com eles associações e conluios e tomando parte nos esquemas usuais da política brasileira. A corrupção, o toma lá dá cá, o conchavo, a mentira, a hipocrisia, a falcatrua, a maracutaia (quem lembra dessa palavra?) peças manjadas do menu político, outrora combatido, viraram ingredientes corriqueiros no cardápio dos governos de esquerda.
O que uma minoria de analistas vem apontando há algum tempo está cada vez mais evidente e consolidado: tudo o que a política não é mais para a esquerda governista é uma prática educativa ética e politicamente transformadora que compreende as classes trabalhadoras como sujeito do processo. Para aquela esquerda, assim como para os partidos da ordem, essas classes não são sujeito da transformação social, até porque não se propõem mais a transformar coisa alguma, mas apenas a acomodar as questões. Quando muito, seu propósito chega ao combate à pobreza, diminuição dos índices das desigualdades e desenvolvimento da economia nos velhos termos destrutivos, sem nenhum questionamento.
Desse modo, o papel das classes trabalhadoras se resumiu a referendar comparecendo às urnas de tempos em tempos a prática política dos seus representantes de esquerda. Por isso, o Congresso virou o palco único da política e os partidos e políticos que lá estão os únicos interlocutores da esquerda, porque para esta é lá, e somente lá, que as coisas se resolvem. Disso resulta que acordos e conchavos feitos pelo alto entre lideranças parlamentares passaram a ser tidos como coisas normais e inevitáveis. Por isso, fazer política para a esquerda governista virou uma prática idêntica ao fazer político das classes dominantes, com todos os vícios e degeneração que lhes são próprios.
A consequência de tudo, e também a nossa grande derrota ideológica, é o abandono total de duas verdades básicas: a primeira é a noção de que sociedades como a brasileira não melhorarão significativamente, não avançarão, não conseguirão resolver seus problemas básicos sem um processo radical de transformação econômica, política e social; a segunda é a ideia de que essa transformação social jamais acontecerá sem a participação efetiva das massas como sujeito político e para isso é necessário que se desenvolva um gigantesco trabalho político-educativo junto às classes trabalhadoras, de construção sólida de consciências e práticas transformadoras, ética e politicamente renovadas.
E a esquerda que se acerta com Cunha?
Mas, voltando ao ponto, se os Cunhas são os velhos inimigos de classe dos quais conhecemos o pensamento, as armas, as artimanhas, os vícios, o temperamento etc., quem é a esquerda que implementa o projeto conservador e, acuada e sob a ameaça de impeachment, apela em defesa da ordem, da legalidade, da democracia, da institucionalidade, do Direito, da Nação, da República, valores tão caros quanto desconhecidos?
Pois bem, não é a primeira vez nem por certo será a última que governos petistas enredam-se em estranhas tramas. Parafraseando o velho Marx, a história se deu uma vez como anedota, depois se repetiu como tiro no pé. Recordemos como o então presidente Lula da Silva com sua popularidade em alta ofereceu-se como escudo para o famigerado então presidente do Senado, dominus dominium do Maranhão, senhor José Sarney, para protegê-lo das graves denúncias de irregularidades feitas nos idos de 2009.
Para Lula da Silva e o PT não importava o conteúdo das acusações nem o efeito positivo que uma investigação acompanhada das punições cabíveis poderia gerar nas consciências – assim como para Lula da Silva e o PT não interessou desde 2002 apagar as impressões digitais dos Cunhas impregnadas por toda parte e que estavam recentes nas privatizações e contrarreformas políticas e sociais, porque isso seria criar embaraços para a estabilidade de seu governo.
O caminho aparentemente mais simples e adotado desde o início foi o da acomodação junto a organismos internacionais, setores da burguesia, veículos da grande mídia e interlocutores políticos do Congresso. Por isso, Lula não promoveu nenhuma “desarrumação” da ordem, muito ao contrário, tratou logo de anunciar que seu governo não promoveria rupturas, que seria “para todos os brasileiros”, por isso entendeu de dar assento em seu governo às forças mais atrasadas da política nacional, compondo seu primeiro ministério até com ex-adversários políticos e representantes do capital.
O governo de Lula da Silva pretendia-se como uma grande e fraterna coalizão em prol do bem da Nação, pelo desenvolvimento econômico com geração de empregos, aumento do salário mínimo e políticas pouco onerosas de geração de renda. Dessa maneira, Lula da Silva agradava seus novos senhores, garantindo-lhes generosas margens de lucro, aquietava os movimentos sociais e atendia minimamente os setores mais pauperizados da população com a chamada renda mínima. Por fim, neste jogo, considerando as regras dadas, os jogadores e as metas estabelecidas, o que ao governo petista importava, naquele caso específico, era apenas que Sarney (e outros espécimes do gênero), mesmo sendo quem era, valia muito como aliado.
À época, então, já atolado no pragmatismo político e livre de qualquer ambição transformadora, o presidente Lula da Silva costurou um acordo em troca de apoio pontual, desprezando qualquer avaliação ética e política que representasse a tentativa da construção de uma cultura política renovada capaz de expressar os anseios de transformação. Há quem ainda se pergunte sobre a real utilidade dessas alianças. De nossa parte, não temos dúvida nenhuma de que elas só servem para preservar as velhas estruturas e cultura de dominação, para desmoralizar a esquerda, para queimar seus projetos na fogueira insana da cretinice democrática burguesa; não duvidamos de que servem para nos derrotar e desacreditar qualquer aspiração de mudança real.
Construir o novo, urgentemente
Mas a roda gira e as manobras geniais, espertalhonas dos articuladores petistas como Lula da Silva, que costuravam os acordos mais indecentes com figuras políticas de putrefata reputação, a fim de garantir estabilidade para seu governo, cavavam um buraco profundo bem embaixo do seu púlpito. As alianças e acordos costurados não serviram para sustentar nenhuma transformação sólida, muito ao contrário, fortaleceram figuras ignóbeis e as forças atrasadas que representam e serviram, sobretudo, para minar o trabalho de construção de alternativas ideológicas, políticas e sociais que se fazia desde o final dos anos 1970, para não irmos mais longe.
Chegamos ao momento em que a história se repete, agora como tiro no pé. O escorpião ferroou o sapo. Petistas e Cunha, ambos sobre o fio da navalha, fizeram acordo de mútua proteção, os petistas não endossavam processos de cassação de Cunha e Cunha não dava segmento aos anseios oposicionistas de impeachment de Dilma Rousseff. Isto é de notório conhecimento.
Foi só o PT rachar em relação à proteção ao deputado que este imediatamente resolveu baixar o escudo que mantinha em torno da presidente. Mas, em seu pronunciamento, a presidente negou que houvesse proposto “barganha" a Cunha e seus aliados. Cunha, por sua vez, acusou-a de mentir e, neste ponto em particular, por incrível que pareça, o governo petista conseguiu ser menos verdadeiro que Cunha. Este episódio deixa uma dúvida atroz: o que será que queima mais o filme já torrado do PT: assumir que selou acordo de mútua proteção com Cunha, o que aliás é um fato, por sua vez, justificado pelos petistas sob o argumento de que este tipo de jogada é imposição do mundo da política; ou, na medida em que nega o acordo, assentir que trabalhou a favor de Cunha, protegendo-o do processo de cassação proposto pelo PSOL por alguma afinidade eletiva?
É neste tipo de intriga e picuinha que o debate atual pretende enredar a todos. Temos que arbitrar sobre os altos e baixos da relação entre Dilma e Cunha que entre si selam acordos, quebram acordos, atraem-se, repelem-se, acusam-se mutuamente. Recusamo-nos a este tipo questão. Nossa alucinação é superar o capital e para isto estas briguinhas de comadres e compadres pelo posto de chofer do carro do patrão não contribuem em nada, muito ao contrário, nos atrasam e desviam da questão fundamental.
É hora de retomar o trabalho junto às massas na perspectiva da construção de alternativas anticapitalistas no conteúdo e na forma; é hora de negar os projetos que ora estão em pauta no cenário político brasileiro, pois envolvem apenas disputas entre os partidos da ordem e estes estão todos de acordo em um ponto essencial: preservar a ordem do capital e seu correspondente sistema político viciado e degenerado.
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Justino de Sousa Junior é professor do Programa de Pós-graduação em Educação da UFC.