A desigualdade e a educação depois do golpe
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- Otaviano Helene
- 06/09/2016
Durante duas décadas, entre 1980 e 2000, o Brasil disputou as piores posições no quesito concentração de renda. Os demais países nessa macabra disputa eram Honduras, África do Sul, Chile e Paraguai, entre alguns outros poucos, todos conhecidos por suas histórias não democráticas e de grande violência institucional. Por volta de 1990, o Brasil chegou a ser o país com a pior distribuição de renda entre todos aqueles para os quais havia informações disponíveis. Essa lamentável situação foi resultado da combinação da longa história brasileira de exclusão e segregação, do projeto imposto pela ditadura militar e da consequente crise econômica que se seguiu após seu fim.
Embora na última década e meia tenha havido uma melhora na distribuição de renda no Brasil, como estávamos em uma situação muitíssimo ruim e essa melhora foi muito tímida e baseada em instrumentos de abrangência limitada, ainda estamos entre os dez ou doze países mais desiguais do mundo e, claro, em péssima companhia.
Pelo desejo daqueles partidos e setores sociais que usurparam e apoiaram a usurpação da presidência da República, o Brasil deve retroceder no que diz respeito à distribuição de renda; afinal, quando as políticas que esses partidos e setores defendem estavam em pleno vigor no país, nossa desigualdade era maior e não mostrava tendências de melhoria sistemática, como ilustra a figura.
Ser um dos países mais desiguais do mundo não é coisa pouco grave, pois uma boa distribuição de renda é condição sine qua non para se construir um país democrático, soberano e desenvolvido e garantir a todos uma boa qualidade de vida (1). Se ao final do período ditatorial pudemos ter o sonho de que em algumas décadas conseguiríamos construir tal país, os últimos 30 anos e o recente golpe mostram que falta muita luta para que esse sonho possa se realizar.
A educação é uma condicionante
A educação básica poderia – e deveria – ser um instrumento para enfrentar a desigualdade e contribuir para a construção de um país mais agradável no futuro. Entretanto, no Brasil, isso não acontece. Ao contrário: o sistema educacional atua exatamente de forma a reproduzir em seu funcionamento as desigualdades econômicas e sociais.
As escolas dos mais pobres são muito piores do que as escolas dos mais ricos; seus professores têm condições de trabalho muito mais precárias; a quantidade de anos de estudo dos estudantes economicamente mais desfavorecidos é muito menor do que a de seus colegas mais ricos. A educação formal das crianças mais pobres começa em uma idade avançada, termina cedo e se restringe a poucas horas diárias de atividade escolar, inexistindo recursos extraescolares, como aulas particulares, atividade esportiva orientada, acompanhamento psicológico, cursos de línguas, viagens culturais etc., coisa comum nos segmentos mais favorecidos.
O valor monetário do investimento educacional em favor dos mais pobres e dos mais ricos dá uma ideia de quão desigual é a educação desses dois grupos. Os investimentos educacionais na educação de uma criança ou jovem pertencente ao contingente formado pela terça parte mais pobre pode não chegar aos trinta mil reais ao longo de toda a vida, ficando, não raramente, ainda bem abaixo disso. No outro extremo, entre os mais ricos, esses investimentos superam, e não raramente em muito, os 500 mil reais.
O fator de discriminação e exclusão dessa diferença educacional é enorme, como revelam, por exemplo, os resultados do ENEM, exame que se tornou um vestibular nacional e serve de porta ou de barreira para o futuro: não há uma única escola classificada entre as de nível socioeconômico baixo ou muito baixo pelo INEP (padrão que engloba a maioria da população brasileira), cujos estudantes tenham tido um desempenho equivalente à média observada nas escolas classificadas como de nível socioeconômico muito alto.
Se, além disso, considerarmos que entre os contingentes classificados como tendo nível socioeconômico baixo ou muito baixo, concluir o ensino médio é uma rara exceção, vemos o poder discriminador e excludente do nosso sistema educacional. Ou seja, não há nenhuma chance – a menos das raríssimas exceções individuais – que uma criança que faça parte da metade mais pobre da população tenha sucesso em sua vida escolar (2).
Com essas características, o sistema educacional brasileiro reproduz a desigualdade atual e constrói as bases para a desigualdade futura, não deixando sequer uma fresta ou um atalho para sua superação.
Triste conclusão
Considerando os perfis ideológicos daqueles que assumiram a presidência da República, por que e de que forma o fizeram, sem que sejam intensificadas as lutas em defesa da democracia, não pode haver nenhuma esperança de superação das desigualdades nacionais, inclusive no sistema educacional. Demonstrações de como esses setores veem o sistema educacional têm surgido de forma cada vez mais frequente.
Exemplos não faltam. O projeto “escola sem partido” e a forma violenta que seus defensores utilizam para defendê-lo; a posição do secretário de estadual de educação pública paulista, que é contra a educação pública paulista (!), pois entende que apenas segurança e justiça devem ser funções do Estado, sendo que “tudo o mais (educação inclusive), deveria ser providenciado pelos particulares”; a PEC 241, que impede que os gastos públicos – origem dos recursos para a educação pública – cresçam além da inflação, quando as necessidades de recursos crescem não apenas com a inflação, mas, também, com o crescimento da população, com o crescimento das exigências educacionais e com o crescimento do PIB, são apenas alguns exemplos recentes do que pode vir por aí.
Os discursos “dinheiro tem, o problema é a gestão”, “só poderemos aumentar os recursos para a educação pública quando acabar com a corrupção” (este, repetido inclusive por aqueles que participam alegremente das formas mais sórdidos de corrupção, entre elas a sonegação de impostos e de contribuições sociais); “se acabar com o desperdício, a educação pública melhorará”; “dinheiro, tem, o problema é que está mal distribuído”, entre outros do mesmo tipo, tão comuns em passado recente e que não haviam desaparecido de todo, voltarão.
A menos que haja uma mobilização suficientemente intensa na defesa da educação pública, da superação das desigualdades e no enfrentamento dos usurpadores da democracia.
Nota:
1) Sobre a dependência dos indicadores de bem estar social com a desigualdade na distribuição de renda, ver, por exemplo, o vídeo “como a desigualdade econômica prejudica as sociedades”, um TED Talk apresentado pelo professor Richard Wilkinson, acessível em https://www.youtube.com/watch?v=BJkH89aCDo4
2) É necessário lembrar que os trabalhadores que fazem parte da metade mais pobre da população recebem da ordem de um salário mínimo ou menos por mês e que a renda domiciliar per capita nesse setor é inferior a cerca de R$ 500 por mês; a renda familiar per capita da quarta parte mais pobre da população é inferior a cerca de cem reais por mês.
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Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”.
Blog: www.blogolitica.blogspot.com