A Igreja e a questão agrária no Brasil
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- Guilherme C. Delgado
- 14/05/2014
Em sua última Assembleia Geral anual (52ª), encerrada no dia 9 de maio, a CNBB aprovou importante documento, de caráter doutrinário e pastoral, sobre a atual questão agrária brasileira, tema a que a grande mídia ora dedica estrepitoso silêncio, ora tratamento estritamente ideológico, pelas razões que veremos em sequência.
Depois de um longo debate interno, que dura no caso específico desde o segundo semestre de 2009, os bispos católicos resolveram enfrentar o tema da terra, como costumam falar, nesta época de plena hegemonia da economia do agronegócio.
Observe-se que em ano eleitoral, como o é 2014, o posicionamento da CNBB sobre o tema, depois de 34 anos da última abordagem similar, em "Igreja e Problemas da Terra", de 1980, é não apenas um fato eclesial importante, como também político e social. Deve-se recordar que o documento de 1980 teve influência doutrinária e política na elaboração do regime fundiário da Constituição de 1988.
O cerne do documento de 2014 é o tratamento dos limites doutrinários e jurídicos dos direitos de propriedade sobre a terra na atual quadra histórica. O tratamento doutrinário – da Doutrina Social da Igreja - e jurídico – da Constituição de 1988 - convergem para os critérios de legitimação da função social e ambiental dos direitos de propriedade, posse e uso da terra.
Muito embora reconhecendo os critérios constitucionais (Art. l86 – função social da propriedade) como eticamente adequados, o episcopado denuncia sua sistemática obstrução na execução da política agrária concreta. Interesses ruralistas incrustados nos poderes de Estado convertem a terra em "mercadoria como outra qualquer" à revelia do direito constitucional, que não comporta esta noção absurda. Ela põe em risco a vida humana, não apenas dos povos da terra engolidos pelos tentáculos da terra de negócio, como também a população urbana, dependente dos recursos naturais contínuos (águas, clima, biodiversidade etc.)
A dicotomia terra de negócio versus terra de trabalho, formalmente resolvida no direito constitucional, volta à centralidade da economia política pela captura do Estado realizada pela autodenominada economia do agronegócio, recalibrada nos anos 2000 com especialização primário-exportadora do comércio externo.
O documento dos Bispos contém também uma análise social e econômica da atual quadra histórica, mas não é este seu eixo e sua linguagem. São “clamores dos povos da terra, das águas e da floresta” e os riscos sociais e ambientais que afetam toda sociedade, especialmente os mais pobres, que movem o episcopado a voltar ao tema da terra. O julgamento teológico da situação, que não cabe aqui tratar, é a verdadeira justificação do falar e agir da Igreja perante esses dados de realidade A larga maioria com que se aprovou este texto – 96% dos votantes, contra apenas 4% de votos negativos – sinaliza rumos eclesiais muito mais próximos do papa Francisco e da própria tradição da Igreja pós-conciliar no Brasil.
Na verdade, a moderna idolatria da "terra mercadoria como outra qualquer" tem consequências radicais sobre a produção de um sem número de vítimas sociais – indígenas, quilombolas, sem terras, trabalhadores assalariados, epidemias urbanas etc. -, fortemente associadas à posse e uso da terra sem limites sociais. Este, em síntese, é o pensamento doutrinário e pastoral da Igreja, que a partir dele pretende dialogar com a sociedade.
Finalmente, temos uma verdadeira provocação política a questionar os nossos presidenciáveis, que nessa pré-campanha eleitoral têm se mostrado ávidos por agradar os mercados. Afinal, um deles, Aécio Neves, autoproclamou-se na última semana como verdadeiro líder do agronegócio (Feira do Agrishow em Ribeirão Preto), disputando o bastão com a presidente Dilma. Enquanto isso, outro presidenciável, Eduardo Campos, percorre o país proclamando a independência do Banco Central como pedra angular da salvação da pátria. Que teriam eles a comentar sobre “Igreja e Questão Agrária brasileira no início do século 21”?
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Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.