As mentiras da democracia
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- Joana Salém Vasconcelos
- 01/04/2015
Em meio à polarização crescente da sociedade brasileira nos últimos meses, pouco se falou sobre um fato extraordinário para a luta social e democrática no país: foi lançada a Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio” (CVDMM) na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
A iniciativa é fruto de uma articulação entre mais de 20 coletivos e movimentos sociais, apoiada pelo ex-deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), que não se reelegeu em 2014. As Mães de Maio protagonizam a conquista, dando-lhe um impulso combativo. A alusão destas contemporâneas mães brasileiras às aguerridas mães argentinas não é mera coincidência. Suas lutas por verdade e justiça guardam semelhanças históricas importantes, tão notáveis quanto são as marcas de continuidade das transições das ditaduras para os atuais regimes eleitorais da América Latina.
A origem do movimento das Mães de Maio é trágica e corajosa. Todos se lembram que o mês de maio de 2006 foi marcado pelo confronto aberto entre PCC e PM paulista. Em menos de duas semanas, entre muitos toques de recolher nas periferias de várias cidades, 493 cidadãos foram executados ou desaparecidos, a maioria com comprovada participação policial. Dentre as vítimas, 351 tinham idades entre 11 e 31 anos. Há quem afirme que na realidade o número de mortos é bem maior.
Desde então, mães, pais e parentes próximos das vítimas iniciaram um périplo em busca de verdade e justiça. Como se pode imaginar, depararam-se com portas fechadas, arquivamentos de investigações, argumentos técnicos duvidosos e ameaças. Uma mãe chegou a ser presa, pressionada a parar sua busca particular.
Em alguns casos, as provas da ação criminosa de grupos policiais já existem, mas a impossibilidade de individualizar o disparador dos tiros fatais é utilizada como escudo burocrático dos executores. “Não há provas de quem realizou o disparo”, escutam, logo antes do arquivamento das investigações. Apesar dos incontáveis obstáculos, as Mães permanecem determinadas a encontrar, julgar e punir os agentes de Estado que cometeram os crimes.
O caso das Mães de Maio é apenas um exemplo das mentiras que sustentam a democracia brasileira, dentre inúmeros outros crimes de Estado que permanecem impunes. A verdade é que a violência de Estado no país não chegou a diminuir com a transição ao regime democrático, tão somente substituiu seu alvo prioritário. Se, durante a ditadura, a doutrina de segurança nacional tratava militantes de esquerda como inimigos internos de uma guerra civil, hoje os “inimigos internos” são outros: a juventude pobre, negra e periférica. A criminalização da pobreza se intensificou como prática sistemática e naturalizada do Estado democrático.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2009 e 2013, mais de 11 mil pessoas foram assassinadas por agentes de Estado no país. Nestes cinco anos, as polícias brasileiras mataram mais do que a polícia estadunidense matou em vinte. Além disso, o Mapa da Violência de 2013 (coordenado por Waiselfiz) revelou que os casos de investigação e elucidação de assassinatos no Brasil varia entre 5% e 8% dos inquéritos, número que alcança 65% nos Estados Unidos, 80% na França e 90% no Reino Unido. É como se a pena de morte já existisse no país.
Houve também a multiplicação dos autos de “resistência seguida de morte”, subterfúgio que na prática libera agentes de Estado para matar impunemente. Na última década, chegaram a mais de 12 mil ocorrências. Ou seja, a democracia brasileira é uma espécie de máquina mortífera, que assassina em média 6 de seus cidadãos por dia, combinando alta letalidade policial com ausência generalizada de justiça.
As últimas eleições foram particularmente desastrosas nesse aspecto. Como explicar, por exemplo, o sucesso eleitoral dos candidatos defensores da redução da maioridade penal? Financiada por empresas de armamentos, a “bancada da bala”, tropa política da criminalização da pobreza no Congresso Nacional, cresceu em 30% nas últimas eleições, conquistando quase 60 vagas na Câmara. Com isso, obtiveram controle da maioria votos da Comissão de Segurança Pública, podendo aprovar seus projetos com facilidade. Em São Paulo, o emblemático Coronel Telhada, que usou seu mandato como vereador para homenagear a Rota com a “Cruz de Honra Constitucionalista”, foi alçado a deputado estadual.
É nesse cenário difícil que surge a Comissão da Verdade da Democracia em São Paulo. Já foram realizadas duas audiências públicas e há um calendário de encontros até julho (mais informações aqui). Os movimentos que a constroem assumiram a tarefa de recolher depoimentos da população vitimada pela violência do Estado democrático, investigar a estrutura das cadeias de comando da Polícia Militar de São Paulo, recompor detalhes de diversos casos de chacinas e assassinatos da última década e elaborar recomendações políticas no sentido da conquista de justiça.
A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal formalizaram seu apoio. O mandato do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) não só está acompanhando de perto os desdobramentos da novidade, como batalhando para construir no Rio de Janeiro uma iniciativa semelhante. Apesar disso, a CVDMM ainda é institucionalmente frágil, ameaçada por correlações de forças desfavoráveis da própria Alesp e precisa garantir que a Comissão de Direitos Humanos não seja sitiada pela bancada estadual da bala.
Trata-se, enfim, de um passo importante em diversos sentidos: denunciar a violência do Estado democrático, amplificar a voz das vítimas, enfrentar os interesses autoritários que ainda controlam espaços estratégicos do poder e fortalecer a proposta de desmilitarização das polícias. De maneira mais ampla, iniciativas como essa apontam para a superação do sentido conservador da transição democrática que atravessamos desde os anos 1980.
Nossos vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile, que em diversos aspectos construíram processos de justiça de transição mais vigorosos que o nosso, ainda não tinham dado um passo como esse. Também para eles, o exemplo pode ser inspirador. Para uma transição incompleta e autoritária, convém uma Comissão da Verdade permanente, que denuncie o Estado democrático como agente contínuo de violência social.
Joana Salém Vasconcelos
Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico