Correio da Cidadania

Monoculturas florestais: a contrarreforma agrária sem fim do sul do Chile

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Conversamos com Jacqueline Arriagada, diretora da Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas do Chile (ANAMURI), sobre o conflito territorial que se desenrola há mais de 40 anos nos territórios do sul do país, como consequência da expansão da monocultura de pinheiros e eucaliptos.

Uma das principais estratégias da ditadura de Pinochet, iniciada em setembro de 1973, foi a criação de um novo ordenamento territorial para o Chile. Isso se concretizou por meio de uma contrarreforma agrária que devolveu 3,2 milhões de hectares de terras para seus antigos donos e transferiu outros 2,5 milhões de hectares das mãos dos camponeses para organismos públicos ou privados, tais como Ministérios, Corporações, Forças Armadas, empresas e Igreja.

Um dos organismos públicos para o qual se transferiram terras foi a CONAF, Corporação Nacional Florestal de Chile, que recebeu 352.731 hectares da ditadura. Em 1974, Julio Ponce Lerou, genro de Pinochet, tornou-se diretor da CONAF. Engenheiro e empresário, Lerou já havia trabalhado para a Compañía Manufacturera de Papeles y Cartones (CMPC), da família Matte, onde desenvolveu vínculos com os negócios florestais. Foi um dos principais operadores das políticas florestais da ditadura. Entre elas, o Decreto Lei 701 de 1974.

O “701”, como é chamado, estabeleceu um subsídio do Estado para as empresas que plantassem pinheiro e eucalipto, correspondente a 75% dos custos de produção, além de um pacote de isenções fiscais. Para obter o bônus, as empresas precisavam comprovar os gastos prévios, o que favorecia aos grandes empreendimentos. Estima-se que, por meio do decreto 701, os grupos empresariais das famílias Matte e Angelini receberam cerca de 60 milhões de dólares do Estado chileno nos últimos 40 anos.

Esse favorecimento não foi atenuado pela democracia. Ao contrário, o bônus foi renovado e ampliado. Em 1998, por meio da lei 19.561, o governo Frei Ruiz-Tagle expandiu os benefícios aos médios e pequenos proprietários que plantassem as duas espécies, chegando a financiar 90% dos seus custos. Além disso, reduziu-se o bônus a 50% para os grandes produtores, eliminou-se a necessidade de gasto prévio e os informes de contabilidade foram dispensados. Assim, se entre 1974 e 1997 as grandes empresas captaram 97% dos subsídios (destinados a 944.176 hectares), a nova lei expandiu a fatia do bônus para pequenos e médios proprietários.

Em 2011, com o prazo do bônus florestal novamente esgotado, a lei 20.488 garantiu sua renovação. E novamente, em 2015, a presidenta Michele Bachelet garantiu sua prorrogação até 2018. Trocando em miúdos, nos últimos 40 anos, o Estado chileno transferiu 612 milhões de dólares para grandes madeireiras e 263 milhões de dólares para pequenas e médias. Hoje a família Matte possui 476 mil hectares em monocultura florestal e a família Angelini, 725 mil.

Como nos contou Jacqueline Arriagada, diretora da ANAMURI e nascida em Bío Bío, uma das regiões mais afetadas pelo extrativismo, a monocultura de eucaliptos e pinheiros tem sido há décadas proclamada como fiadora do “segundo salário do Chile”. Sua reflexão sinaliza como a nação chilena tornou-se vítima de um Estado extrativista, mais forte que qualquer governo de ocasião. A seguir, a entrevista.

Joana Salém Vasconcelos: Desde a ditadura, com Decreto Lei 701, o Estado chileno entrega um subsídio para as indústrias florestais que promovam monocultura de pinheiro e eucalipto. Como essa política afetou ao território do sul do país?

Jacqueline Arriagada: Esse decreto, de setembro de 1974, acelera a destruição dos territórios dos bosques nativos, com queimadas e cortes, para plantação massiva dessas duas espécies. Com a subvenção de tais plantações a paisagem desses territórios começou a mudar de maneira determinante.

Lembro-me que nesse tempo eu tinha cerca de 9 anos. Para nós, os morros e montanhas, cheios de bosques nativos, eram lugares de coleta de avelã, fungos, flores, o que fazíamos em passeios escolares e familiares. E o território foi se transformando, até que um dia perdemos as nossas trilhas. As trilhas eram parte de nosso caminho, sabíamos por onde passar nos bosques. Com essa massa de recursos do governo ditatorial para as empresas florestais também se queria tirar os camponeses (da terra), que para eles eram um incômodo. Para isso, tiveram que fazer modificações no sistema legal de classificação do solo.

Uma delas foi declarar as terras inférteis. A justificativa para a monocultura florestal era a infertilidade da terra e, portanto, não haveria alternativa além de colocar essas espécies, que estariam “assegurando o futuro”. Na região de Bío Bío e na Araucania começaram a plantá-los em escala. Aquelas terras foram classificadas como “degradadas” devido à plantação de trigo. Dizia-se na época que o “celeiro do Chile” tinha destruído as terras. Mas isso era parte do argumento de que estas espécies iriam ajudar a preservar os terrenos.

Na época, não havia nenhuma informação sobre o que significava plantar o eucalipto, sua absorção da água e dos nutrientes da terra. Essa informação era, digamos, um segredo de Estado.

JSV: Assim, a ditadura adotou um discurso “preservacionista” para plantar estas espécies?

JA: Sim. Usou o argumento da proteção do solo em relação à degradação, que teria sido causada pela produção de grãos nos territórios camponeses e indígenas.

JSV: Quem se beneficiou diretamente do decreto 701?

JA: Em nosso território está a empresa de celulose Arauco, para quem essas duas espécies servem de matéria prima. Alguns lugares se transforaram em complexos industriais. A aplicação de cloro como branqueador da celulose é um agente contaminador até hoje presente. Nisso não houve mudanças, apesar dos protestos e reivindicações. A família Angellini é a principal acionista da Arauco. Anacleto Angelini faleceu, mas seus herdeiros continuam até hoje. As extensões territoriais destas duas espécies são muito amplas na Bío Bío e Araucania.

Hoje se estendem até o Uruguai, onde também se veem tais investimentos, sob a mesma lógica de exploração de territórios que são férteis, mas são declarados inférteis. A empresa florestal Mininco (conglomerado da família Matte e outras famílias) também tem grande presença na região de Bío Bío. Hoje esses grupos fazem parte da proposta do “Chile potência agroalimentar e florestal”. A justificativa para seguir colocando recursos públicos nas plantações de pinheiro e eucalipto é que estas seriam o “segundo salário do Chile”. O cobre seria o primeiro e as florestais, o segundo.

Por isso não se pode reconverter esses territórios a outras plantações. Estão protegidas por lei. Não se pode colocar outra espécie onde se plantou pinheiro e eucalipto. E esses são argumentos dos governos, dentro de um ciclo de proteção das empresas florestais.

JSV: Há continuidade na política da ditadura e da democracia para as empresas florestais?

JA: Total e absolutamente. Não há modificação essencial. Nisso não se pode tocar, é um tema que tem a ver com o “bem econômico do país”. Há fortes protestos populares contra os interesses empresariais, reivindicando direitos sobre esses territórios. Por isso, desde o nosso I Congresso Nacional da ANAMURI, defendemos a derrogação do decreto 701.

JSV: Em 1998, se ampliaram os bônus para pequenos e médios proprietários. Quais foram as consequências dessa ampliação?

JA: Antes de responder isso, gostaria de falar da dívida que o Estado chileno possui com as populações desses territórios. Ao subsidiar essas empresas, tais grupos se fizeram multimilionários a partir de recursos estatais. Há necessidade de reparação que precisamos discutir coletivamente e apresentar como demanda dos territórios ao Estado chileno. Não aos governos. Os governos são eventuais. O Estado tem uma responsabilidade legal na destruição desses territórios. Foram feitas demandas por meio da figura jurídica dos “direitos humanos”, mas essas são individuais. E é preciso coletivizá-las.

Agora respondendo à sua pergunta, essa ampliação do bônus faz com que os pequenos e médios proprietários alterem seu padrão alimentar e produtivo, convertendo seus terrenos para plantação de pinheiros e eucaliptos. Entregam-lhes recursos do Estado sem que seja preciso justificar. Nesse momento, os pinheiros e eucaliptos estão praticamente na porta das casas das pessoas. Os impactos são tremendamente cruéis. Muita gente hoje fala: “nunca nos disseram que isso aconteceria”.

Primeiramente, nenhuma dessas plantações é comestível. Mas diziam que lhes assegurariam a vida e o futuro dos seus filhos e netos. Em segundo lugar, as plantações secaram suas nascentes de água. E agora os camponeses estão presos porque não podem, por lei, voltar a semear seus alimentos. Estão obrigados a plantar novamente pinheiro e eucalipto, porque receberam o bônus.

JSV: E como a vida camponesa é afetada em termos de dependência econômica e da necessidade de assalariamento?

JA: Há uma perda da identidade camponesa. A realidade do campo se transforma muito com a plantação florestal. Normalmente, pouco resta de terra para cultivo de alimentos. Portanto, tais espécies obrigam o camponês a sair de casa para ser assalariado agrícola de temporada, às vezes fora de seu setor. Isso gera itinerância, camponeses indo de um lugar a outro buscando salário. Já não se vive do campo e as relações entre os vizinhos mudaram muito.

A vida comunitária era parte do nosso dia-a-dia. Se estou colhendo, por exemplo, minha comunidade vem me ajudar na colheita. Essa era nossa forma de vida. Mas essas colheitas já não existem. E antes as comunidades se identificavam profundamente com seus cultivos. Por exemplo, o trigo. Havia artesanatos de trigo, uma diversidade gigantesca de momentos vinculados ao trigo, inclusive religiosos.

Atualmente, se há uma ou duas famílias semeando trigo é por acaso. Perdeu-se essa relação forte com um modo de vida, baseado em alimentos determinantes. Isso foi alterando a nossa essência e uniformizando a maneira de viver, que antes passava por nosso alimento e também pela relação das crianças com o campo.

Assim, foi sendo produzido um desenraizamento. Os governos fecharam as escolas rurais e resolveram buscar as crianças do campo e levá-las às escolas urbanas. Isso gerou um desenraizamento profundo, que destrói a identidade camponesa. É uma das consequências desse avassalamento às monoculturas florestais que nos impuseram a sangue e fogo.

JSV: Como o modelo extrativista afeta especificamente a vida das mulheres no campo?

JA: Esse desenraizamento produzido afeta muito a relação das mulheres com suas comunidades. A impossibilidade de ter terras e de poder viver diretamente do campo impõe formas de viver externas, gerando a necessidade de tirar as crianças do campo. Estão violando nossa identidade como mulheres camponesas por meio do desenraizamento das nossas crianças.

Nesse momento, o campo não é atrativo para viver, é inseguro para as camponesas, não garante nossa sobrevivência. Isso nos desconecta da nossa cultura, do nosso ser profundo. Já estamos cheias de venenos. E programas estatais, como o PRODESAL (Programa de Desarrollo Local do INDAP), dirigidos às mulheres, são migalhas que não dão conta da dívida histórica do Estado chileno com as camponesas.

Os programas dirigidos às mulheres são ainda mais miseráveis que aos homens, estão feitos para perpetuar o assistencialismo e a dependência de pequenos subsídios estatais. São quantias muito pequenas que as mulheres podem acessar por três anos, para agroecologia, por exemplo, mas depois já não podem continuar.

JSV: E como os atuais incêndios se relacionam com a expansão das empresas florestais? Você pensa que podem ter origem criminosa?

JA: Não tenho nenhuma dúvida. A invasão das terras com eucalipto e pinheiro é criminosa em si mesma. Existe uma enfermidade do pinheiro que as empresas não puderam controlar. Trouxeram um controlador biológico que, ao final, também se tornou um problema. Ocorre que os seguros contratados não remuneram os empresários por doenças nas plantações, mas sim por incêndios.

Portanto, para algumas empresas, os incêndios têm sido muito convenientes. Ocorreram dois momentos pontuais de incêndio. Primeiro em 2012, incêndios produzidos em três comunas foram criminalmente atribuídos a um senhor deficiente mental. Que fácil, não? E agora, em 2017, ocorreram incêndios orquestrados. Até os veículos mais determinados na desinformação falaram que os incêndios foram orquestrados. E os seguros seguiram acobertando esses fatos criminosos.

JSV: Em sua opinião, esses incêndios se tornaram um negócio?

JA: Mais que os incêndios, a seca dos territórios virou um negócio. Há uma frota gigantesca de caminhões-pipa abastecendo água para consumo humano no campo. É um tremendo negócio! São muitos setores rurais que, dramaticamente, não têm água para beber. E são setores sulinos. Alguém pode perguntar: “como no Sul falta água? Essa é a realidade do Norte e não do Sul...”. Contudo faz algum tempo que é preciso abastecer o sul de água por meio do novo negócio dos caminhões-pipa.

JSV – Quais as principais formas de resistência e luta das comunidades camponesas e indígenas? Como a ANAMURI se organiza para enfrentar tais problemas?

JA – A primeira reivindicação é a derrogação do decreto 701 e suas figuras jurídicas atuais. Esse decreto foi sendo camuflado por outras leis, mas sempre se manteve o bônus. É igual ocorre com a Monsanto: essas fusões para alterar sua imagem. Ou como a “economia verde” e outras tentativas de melhorar imagens desgastadas. O terremoto e os incêndios foram justificando um aumento dos recursos para as empresas florestais. A partir dos incêndios há um programa da CONAF que coloca uma tremenda quantidade de recursos nas plantações novamente. E por outro lado a CONAF depende do Ministério da Agricultura, que coloca apenas escassos recursos nos programas de agroecologia.

Eu sou parte do Conselho da Sociedade Civil da CONAF, que se reúne a cada três meses. Isso me provoca uma profunda contradição, mas ali podemos captar informações. O Conselho se iniciou com uma ideia de participação real, mas depois mudaram seus membros para atenuar as demandas. Ao final, hoje são as empresas que fazem sua gestão, muito mais que a sociedade civil. Na verdade, esses conselhos já não servem para participação.

Além disso, há tempos ocorre o levante de alguns territórios, sobretudo o conflito mapuche por autonomia e identidade dos povos. Mas há também muitas debilidades nessa luta. Desde 2009, a ANAMURI criou o Tribunal Ético, um espaço para as assalariadas agrícolas de temporada tratarem da violência e discriminação de gênero no campo. Esse Tribunal ocorria em Santiago nos dias 26 de agosto, que é o dia da assalariada agrícola de temporada, com o tema da violência contra as mulheres no campo.

Nesses espaços, foi se tornando mais visível a superexploração do trabalho agrícola pelas empresas florestais, vinícolas e frutícolas. No ano passado, enfim, fizemos um Tribunal Ético em Cañete, que foi um espaço muito importante de visibilização de territórios mapuche e das mulheres. Aí, foi denunciado o assassinato de Macarena Valdés uma lamnguen (1) que participava da luta contra a instalação de uma empresa no território. Além disso, temos que organizar a defesa da Machi (2) Francisca Linconao, acusada pela morte do casal Lugshinger Mackay. Há outra lamnguen que foi forçada a parir dentro da prisão, não se respeitando o direito do bebê de nascer em liberdade. Nesses Tribunais escutamos muitos relatos de tortura, repressão e perseguição. São uma ferramenta importante da nossa resistência.

Além disso, atualmente desenvolvemos o Instituto de Agroecologia de e para as Mulheres do Campo “Semeadoras de Esperança”, com os quais avançamos na soberania alimentar, dando conteúdo à nossa proposta política junto à CLOC e praticando o feminismo camponês e popular no sentido do Bem Viver. Enfim, sabemos que sem terra, água e biodiversidade não é possível desenvolver a soberania alimentar. E por isso lutamos por uma reforma agrária integral e popular, sabendo que a concentração da terra em nosso território é uma das maiores causas das desigualdades no Chile.

Notas:

1) “Irmã” em mapundungun.
2) Autoridade médica e religiosa.

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Joana Salém Vasconcelos, de Santiago para o Correio da Cidadania

Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico

Joana Salém Vasconcelos
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