A década imperdível ou nós, que não sabemos não ser livres
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- Joana Salém Vasconcelos
- 26/10/2018
Eu tenho a idade da democracia brasileira. Nasci no mesmo dia que foi instituído o plano Bresser, que veio depois dos planos cruzado I e II e antes dos planos verão e Collor. Era mais um entre aqueles muitos planos que fracassaram na tentativa de conter a hiperinflação. Os economistas, realmente, foram derrotados naquela década. Mas e nós, que nascemos no meio da confusão?
A Assembleia Constituinte tinha 4 meses e meio quando eu nasci. Nossas mães e pais, nossas avós e avôs, estavam nas ruas há anos. Exigiam democracia, eleições diretas, justiça social, dignidade, educação e liberdade. Empenharam a vida naquilo: a nossa liberdade. No dia que aprovaram a Constituição de 88, eu tinha 1 ano e 3 meses. Os adultos à minha volta comemoraram o texto final, mas com algumas críticas e ressalvas. Enfim estava permitido criticar!
No meu íntimo, nunca gostei que chamassem os anos 80 de "década perdida". Na infância, quando escutava essa expressão não conseguia desassociá-la de mim mesma. Ficava pensando o que poderia ter sido tão bom nas outras décadas, que justo quando eu nasci havia se perdido. Parecia que minha geração ganhava um selo de tristeza ou derrota, antes mesmo de ter a chance de fazer outra coisa.
Mais tarde, fui descortinando aquela sombra. Aquela mancha soturna que pairava sobre a década de 1980 escondia vários raios de luz. Por que chamar de "perdida" uma década que trazia tantas histórias de resistência e vitória? Uma década de tantos nascimentos? Perdida para quem? Para o mercado? Para os ditadores? Para os planos de estabilização?
A década de 1980 carregava consigo centenas de comícios das Diretas Já, multidões nas ruas exigindo o fim da ditadura, presos políticos sendo soltos, criação do MST e mobilização pela reforma agrária, reorganização dos estudantes, novo sindicalismo combativo, terceira onda feminista, muita gente exilada encontrando o caminho de volta pra casa, o triunfo do humor libertário contra as oligarquias, a pluralidade de partidos políticos em gestação... Década perdida? Nada! Nossa década efervescia ganhos para o país. E nós, que ali nascemos, não queremos perdê-la.
Nós temos a idade da democracia e não sabemos não ser livres. Não sabemos viver em calabouços e cala-bocas. Não sabemos não lutar, porque somos fruto dos movimentos que nos abriram o futuro democrático do Brasil. Não seremos aprisionados ou proibidos, porque isso está fora do nosso horizonte existencial. Existimos em liberdade desde os primeiros passos, somos filhos da criatividade e da pulsão de vida das ruas. O desejo de morte que paira no ar com o avanço do fascismo nos causa náusea.
Nascemos de uma década ganha, que nos ensinou a discordar, proteger nossos direitos, resistir aos autoritarismos. Somos feitos daquilo que foi imperdível nos anos 1980. Somos a semente mobilizadora que nasceu com a liberdade política, e vai morrer junto com ela.
Joana Salém Vasconcelos
Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico