As eleições da Venezuela e o Brasil
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- Joana Salém Vasconcelos
- 29/07/2024
Agencia Venezolana de Noticias
O debate sobre Venezuela no Brasil alcançou o ápice da maluquice quando Lula resolveu interpretar uma fala de Maduro com a mesma linha enviesada da grande imprensa que insiste em chamá-lo de “ditador” (ditador eleito repetidas vezes pelo voto popular em eleições livres?). No dia 19 de julho, quando Maduro discursou para sua base e utilizou a expressão “banho de sangue”, ele se referia ao potencial violento da sua oposição, que nestas eleições foi representada pelo candidato Edmundo González.
Aqui no Brasil, muitos imaginaram que a derrota de Haddad em 2018 produziria um “banho de sangue”, não porque o PT impediria a posse do candidato vitorioso, mas porque Bolsonaro é extremista e prometia “fuzilar a petralhada”. É a mesma coisa na Venezuela de 2024.
Como todos sabem, González é um avatar de Marina Corina Machado, uma figura de extrema-direita com tonalidade fascista e potencial repressivo. É ela quem faz campanha, vai aos comícios e comanda a tropa de apoiadores nestas eleições. Corina Machado apoiou o golpe de 2002, é favorável às sanções econômicas que os EUA realizam contra seu próprio país (!), prometeu privatizar a indústria petrolífera venezuelana (a serviço dos EUA) e fomentou os protestos ultraviolentos realizados contra o chavismo em 2014 e 2017, que resultaram em dezenas de mortes. A extrema-direita venezuelana já se mostrou capaz de “banhos de sangue”, e obviamente é a isso que Maduro se referia.
Corina Machado é perseguida, tanto quanto Bolsonaro
Corina não pode se candidatar diretamente. Ela teve seu mandato de deputada cassado em 2014 porque se tornou embaixadora do Panamá na ONU ao mesmo tempo em que era parlamentar, violando o artigo 149 da constituição venezuelana, que proíbe funcionários públicos de assumirem cargos em governos estrangeiros. E se tornou inelegível em 2015, por ocultação de ativos e inconsistência na declaração de bens durante seu mandato parlamentar.
Considerando sua alta popularidade, Corina é hoje a figura pública venezuelana mais alinhada a Bolsonaro, Trump e seus congêneres. Assim, a vitória de González representaria, sim, um perigo para a Venezuela e uma péssima notícia para a América Latina. Aliás, tão ruim quanto uma vitória de Trump nos EUA.
Com González, o país seria submetido a privatizações devastadoras e possivelmente fraudulentas, corte de programas sociais e fim de repasses de orçamento público a coletivos populares, demissões massivas e um processo político perigoso de caça às bruxas, com tendência repressiva. A direita venezuelana acumula desejo de vingança, tanto pela perda de poder econômico devido ao predomínio estatal-militar e popular da economia sob o chavismo, como pela frustração com a própria incapacidade de quebrar a hegemonia chavista no último quarto de século, apesar de todos os tipos de esquemas ofensivos (golpes, candidaturas brandas, presidentes autoproclamados, boicote eleitoral, protestos violentos, mobilização de massas, todo tipo de difamação internacional etc.).
A narrativa de perseguição da inelegível Corina também é um clássico. Mais um ponto em comum com Bolsonaro. A imprensa brasileira, que até aqui concorda com a tese jurídica da inelegibilidade do Bolsonaro, para manter a coerência deveria acatar a tese jurídica da inelegibilidade de Corina, que cometeu inegáveis violações das leis do seu país.
Lula x Maduro?
Em maio de 2023, Lula viveu uma lua-de-mel com Maduro, quando este veio ao Brasil e foi calorosamente defendido pelo presidente brasileiro. Lula disse que a visita de Maduro era um momento histórico (ele tinha sido banido por Bolsonaro em 2019 e não pisava no Brasil desde 2015). Disse também que chegou a brigar com “companheiros socialdemocratas europeus, com governos, com pessoas dos Estados Unidos” para defender a Venezuela. Reafirmou o caráter democrático do governo venezuelano dizendo, olho no olho com o Maduro, que era “a coisa mais absurda do mundo, para as pessoas que defendem democracia, negarem que você era presidente da Venezuela, tendo sido eleito pelo povo e o cidadão que foi eleito para ser deputado ser reconhecido como presidente”.
De lá pra cá, Lula se curvou a outras agendas (tema para outras colunas). Tem se esforçado para ser querido por setores das classes dominantes brasileiras, pelo mercado, pelos partidos de centro e de direita que colocou nos ministérios, e até pelo presidente da Câmara. A conciliação lulista é uma faca de dois gumes: ela pode representar, em alguns cenários, um pequeno aumento de margem de manobra ao governo, mas em outros, representa simplesmente a submissão. Entendo as declarações recentes de Lula sobre as eleições da Venezuela na chave geral de um esforço de conciliação, que se tornou, na prática, um processo de submissão.
Quando Lula reproduziu a interpretação falaciosa da imprensa sobre a fala de Maduro, aí se abriu um bate-boca sui generis. Fogo amigo é muito pior que fogo inimigo. Ofendido pela grosseria de Lula, Maduro recomendou ao presidente brasileiro um “chá de camomila” e afirmou que as urnas eletrônicas da Venezuela são auditadas, diferente do Brasil. A provocação entrou no Brasil como um curto-circuito incompreensível: Maduro usando críticas bolsonaristas contra o sistema eleitoral brasileiro para atacar Lula? Como assim? O que está acontecendo, afinal?
Quem ficou contente foi a “terceira via”, que raramente viraliza, mas conseguiu circular um meme de Maduro mesclado com Bolsonaro com a legenda “Maduronaro”, e outro deles abraçados, na batida máxima “extrema-direita e extrema-esquerda é tudo igual”. A incompreensão sobre as declarações de Maduro no Brasil é gigante e reflete uma comunicação confusa e pessimamente articulada entre dois povos (sobretudo por responsabilidade da grande imprensa brasileira).
Na verdade, Maduro não replicou as críticas de Bolsonaro. Ele, por sua vez, está tão distante do debate brasileiro que sequer poderia medir que a sutileza da sua fala é incompreensível na polarização daqui. O que Maduro disse, afinal, foi que as urnas eletrônicas da Venezuela imprimem os votos instantaneamente (são auditadas no próprio processo eleitoral), enquanto as urnas do Brasil não são – o que é verdade. As nossas eleições são auditáveis, mas quase nunca auditadas. Maduro daria um tiro no pé se de fato estivesse criticando as urnas do Brasil, pois foram estas que deram vitória ao seu maior aliado do continente. A comparação foi infeliz, mas ele estava efetivamente defendendo a credibilidade das eleições do seu país, muito mais do que se metendo na nossa. Mas como em política não importa “ser”, importa “parecer ser”, a consequência prática refletiu a interpretação equivocada da sua fala.
Maduro estava defendendo a credibilidade das suas próprias urnas. Mas não foi isso que o TSE entendeu. Ato contínuo, o TSE cancelou a observação internacional no pleito venezuelano, alegando que a Venezuela criticou o processo eleitoral brasileiro. Um efeito-dominó altamente prejudicial e imprevisto por Lula, que precisa pensar mais antes de tocar o calcanhar de Aquiles de seus aliados internacionais.
Por que a Venezuela é uma democracia?
A Venezuela fez mais de 25 pleitos desde a chegada de Chávez ao poder em 1999. Somente Hugo Chávez atravessou 14 pleitos diferentes, entre eleições, referendos e plebiscitos:
1. Eleições Presidenciais de 1998
2. Aprovação da Assembleia Constituinte em 1999
3. Aprovação da nova Constituição em 1999
4. Eleições Presidenciais de 2000
5. Referendo revogatório de 2004
6. Eleições regionais de 2004
7. Eleições legislativas de 2005
8. Eleições Presidenciais de 2006
9. Rechaço à reforma constitucional em 2007
10. Eleições regionais de 2008
11. Plebiscito da emenda da reeleição em 2009
12. Eleições legislativas de 2010
13. Eleições Presidenciais de 2012
14. Eleições regionais de 2012
Chávez perdeu a reforma constitucional de 2007 por uma margem estreita, mas aceitou a derrota, como deveria. O objetivo da reforma constitucional derrotada era duplo: por um lado, consolidar o poder político bolivariano criando mecanismos de reeleição ilimitada e facilitação do poder executivo para criar novas comunas e, por outro, fortalecer o bem-estar social e economia socializada, com redução da jornada de trabalho para 6 horas, novas formas de propriedade social, inclusão dos trabalhadores autônomos na seguridade social, prioridade à propriedade coletiva em relação à privada na distribuição de incentivos etc.
Apesar da tendência à centralização política, a quantidade de vezes que o chavismo se submeteu às urnas e ao escrutínio popular em processos lisos e internacionalmente verificados contradiz a pecha de “ditadura”.
Chávez aproveitou as eleições de 2005, quando a oposição decidiu não participar, para ampliar e aprofundar o processo de transformações econômicas do país e de enraizamento dos mecanismos de poder da sua revolução. A própria direita fez autocrítica da sua abstenção, porque voltou aos pleitos seguintes, já que a estratégia de deslegitimação funcionou para fora, mas não junto ao povo venezuelano.
Maduro foi eleito em 2013 com 50,6% dos votos, depois reeleito em 2018 com 67% dos votos, e agora foi testado pela terceira vez, em um pleito com centenas de observadores internacionais de dezenas de países. Além disso, durante seu mandato ocorreram eleições regionais e municipais em 2013, 2017 e 2021. Será mesmo uma ditadura?
Maduro é criticável, mas a vitória da oposição seria trágica
Nicolás Maduro com certeza merece muitas críticas. Tem um perfil hegemonista, obstrui outras candidaturas de esquerda, vem de uma corrente sindical com perfil centralizador. É preciso lembrar que durante seus governos, Maduro enfrentou um período muito mais turbulento que Chávez, com queda brusca do preço do petróleo e acirramento das sanções estadunidenses. Ainda assim, enfrentou a beligerância e a violência golpista da oposição e conseguiu, com apoio popular genuíno, desmoralizar o fantoche Juan Guaidó, apesar de este ter ganhado um impensável acesso às reservas de ouro da Venezuela em bancos ingleses.
Maduro precisou apelar para criptomoedas para enfrentar o boicote internacional e escapar da armadilha monetária do sistema bancário mundial contra a Venezuela. Ele perdeu acesso às reservas acumuladas pelo próprio país, fato de uma gravidade que não pode ser subestimada.
Atravessando dificuldades pesadas e sanções cada vez mais duras, o governo de Maduro encontrou uma “desculpa perpétua” para aumentar a centralização, se aproveitando da famosa “síndrome da praça sitiada”. As sanções econômicas externas eram reais e altamente prejudiciais, mas ao mesmo tempo se tornaram o argumento pétreo para toda sorte de erro do governo.
Os mecanismos de poder popular e o cooperativismo, anunciados no início da revolução bolivariana, nunca foram plenamente desenvolvidos. Cooperativas, assembleias comunais, mecanismos de decisão direta dos poderes locais e controle popular de temas estratégicos estão previstos na constituição, mas não chegaram a ser plenamente postos em funcionamento, em função da perspectiva centralista dos líderes do PSUV. Ao mesmo tempo, como afirmar mecanismos de poder popular em meio ao colapso econômico?
Com certeza muitos erros de política econômica foram cometidos, acarretando na demora injustificável em resolver o problema emergencial da insegurança alimentar, do colapso dos empregos, da pobreza e da imigração em massa. A questão cambial foi gerenciada de maneira caótica, com o Bolivar esfacelando e o governo sem criatividade para oferecer soluções rápidas para a derrocada da moeda. Veio a pandemia, o cenário se agravou. O que recuperou parcialmente a Venezuela desde 2022 foi, por um lado, o aumento da produção interna de alimentos e, por outro, o aumento do preço do petróleo. Além disso, no cenário da guerra da Ucrânia, os EUA voltaram a comprar petróleo da Venezuela e reduziram o peso punitivo das sanções econômicas
Com o empenho e financiamento dos EUA e da imprensa empresarial do mundo, a Venezuela se tornou um sinônimo de inferno. Os brasileiros precisam urgentemente de melhores fontes de informação sobre o país, para deixar de reproduzir a linha editorial antichavista, sem discernimento crítico sobre a realidade venezuelana. O presidente Lula que o diga.
Publicado originalmente em Opera Mundi.
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Joana Salém Vasconcelos
Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico