Burguesia e gangsterismo no esporte
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- Nilso Ouriques
- 10/04/2018
Dante Panzeri
Nosso primeiro artigo falou sobre Ariel Scher e sua entrevista maravilhosa com Jorge Vandano, jogador, campeão do mundo com Maradona em 1986, e diretor de esportes do Real Madrid por alguns anos. A bola da vez de hoje é um intelectual argentino chamado Dante Panzeri.
Um visionário, homem corajoso, que enfrentou a dura e sangrenta ditadura da Argentina na década de 1970. Dante nasceu em 1921 em Varillas, Córdoba, e morreu em Buenos Aires, em 14 de abril de 1978, poucos dias antes da abertura da Copa do Mundo, a qual João Havelange plantou na Argentina para facilitar a vida dos militares desgastados e dar alguma alegria enganosa àquele povo sofrido.
Dante denunciou a utilização da Copa do Mundo como mecanismo ideológico e político. Com pouco mais de vinte anos já trabalhava na redação da revista "El Gráfico" sendo depois seu dirigente principal. Trabalhou também nas revistas "Así” e “Satirición" e nos diários La Prensa, El Dia, Crônica e La Opinión, assim como também em vários canais de televisão. Escreveu dois livros polêmicos: "Fútbol: dinâmica de lo impensado" e "Burguesia y Gangsterismo en el Deporte" publicados pela editora Capital Intelectual, em 1974.
Foi ele quem carimbou com graça, magia e inteligência a crítica esportiva da Argentina, uma espécie de João Saldanha do Brasil. Dante transgrediu todos os níveis, um visionário que suplantou a todos. Um homem que quarenta anos atrás já denunciava a corrupção da Federação Argentina de Futebol e da FIFA, chamando seus dirigentes de chefes de compras, quadrilhas burguesas, gângster do mercado. Também denunciou as mentiras periódicas do jornalismo e dos dirigentes esportivos.
Dante era um sonhador, acreditava que seus escritos poderiam dar luz a um processo de recuperação ou moralização do esporte. Escreveu seu livro, “Burguesia e Gansterismo en el deporte”’, procurando dar ao esporte duas coisas que achava intensas e imprescindíveis: dignidade e alegria.
Afirmava ser o esporte mundial e na Argentina uma loja secreta, uma burocracia chantagista, de lícita aparência, sempre debaixo do estandarte da recreação, saúde física e felicidade dos povos. Dizia com toda a coerência ser o esporte uma chantagem e mesmo uma extorsão ao Estado. Para ele, o Estado Nacional, a burguesia, a mídia e o sistema esportivo internacional trabalhavam juntos no processo de alienação das massas e nos ganhos financeiros.
A comprovação dessa verdade aparece clara quando os Estados nacionais em crise pagam pelos grandes espetáculos esportivos como a Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Fórmula 1 etc. Ele via o esporte como um suporte da igualdade social enganosa e principalmente como um instrumento de doutrinamento das massas populares e do esporte enquanto escola do civismo. O pragmatismo do jogo sendo vedado pela moral desportiva burguesa, agarrado ao plano material do sucesso.
Dante denunciou a parasitologia burguesa do espetáculo imposto, semanas após semanas, na lógica da doutrinação ideológica. Tudo isso sendo formado pela atividade política permanente de federações e confederações baseadas unicamente no lucro. Mostrava essa gente como uma oligarquia intocável, associadas à burguesia industrial dos materiais esportivos, banqueiros, gângsteres, e associadas às artes, aos intelectuais, às burguesias literárias tratantes, universidades cegas, burguesias dos vícios e drogas, a própria burguesia política e sindical. Fala também da hipertrofia esportiva, causada pelos intensos e imensos calendários esportivos, assim como pela quantidade de esportes e de informação diária acerca deles, um desenvolvimento esportivo nocivo, maldoso, que não oferece nada para a saúde dos povos.
A exposição diária de jogadores e atletas, felizes e milionários, com mulheres bonitas, carros e mansões, também não fugiu a sua crítica certeira. Tratava desta situação como uma aberração diante da situação do povo. Percebia o esporte como um anestésico mental de todos os povos que pagam por isso sem questionar a casta dirigente dos parasitas de plantão.
Afirmava sem vacilar que o esporte é produto de uma civilização da rapina, onde expressões como matar, derrotar, sacrifício, força, degolar, são comuns, associadas ao fanatismo e à violência, assim como à demagogia e ao roubo. Tudo tendo como sustentáculo moral o bem comum, o bom mocismo, o altruísmo, a beleza corporal, com o objetivo de melhoramento social.
Na lógica infantil do entretenimento, distração, passatempo e com o acobertamento ético dos valores econômicos, o esporte visto apenas como mercadoria. O esporte e seu cinismo, como apologia ao corpo saudável, mas com a presença intensa do doping. O esporte como família, mas com a prostituição de jogadores encoberta. O esporte da amizade, da vida limpa, do “fair play”, mas que faz o contrário. O esporte dos governos populistas, autoritários utilizando ídolos como para-choque de suas intenções. Dizia: "el deporte que vosotros matáis, goza de buena salud". Anunciava que a concepção sã e limpa de formar o homem de bem, de bem público, de servir ao povo como escola prática da democracia, estava morta.
O jogo coletivo como algo harmônico deu vazão ao egocentrismo descontrolado, personalismo, individualismo. E criticava o jornalismo esportivo, dizendo que essa era uma de suas grandes dívidas, porque preferia ser cúmplice, com amizade e boas relações com grandes jogadores, sem serem críticos ao sistema, ao capital e aos Estados nacionais. Ele chega a comentar aquilo que os jornalistas fizeram com Maradona, condenando-o por ter tatuado Che Guevara em seu braço, transformando a homenagem ao médico argentino e guerrilheiro latino-americano em algo mal, nunca um bom exemplo a ser seguido.
O jornalista não perdoou o jornalismo esportivo marcado pela venalidade, aquilo que denominava de prostituição dos jornalistas, supostamente preceptores da conduta cidadã, ou como diria Chomsky, os vigilantes da liberdade, a serviço do grande capital. O esporte foi mostrado por ele como sendo formado por uma quadrilha moderna, na qual o roubo e a expropriação são acobertados pelos benfeitores da mídia.
Ele sempre denunciou a hipertrofia dos esportes, a quantidade interminável de eventos esportivos, tendo como lógica o lucro, o mercado, quase como uma asfixia mental. Ao mesmo tempo adentrava no campo da psicologia ao discorrer sobre a racionalidade e a irracionalidade esportiva, principalmente do futebol, esporte de massa, quando afirma "quem não grita não é emocional", afinal o futebol não é como uma corrida de carros, nas quais nada se sente a não ser o motor e o girar dos olhos.
Dante percorre o caminho do nacionalismo e patriotismo ao colocar a vitória argentina como vitória moral de um povo na primeira capa de todos os jornais, orgulho nacional, mas discorda deste abuso ideológico e da sua utilização oportunista pelo Estado e pelo poder das classes dominantes. No campo da divisão do trabalho no esporte, Dante vai também mostrar e denunciar a criação de uma tecno-burocracia e de inúmeros assessores para cada particularidade, tanto dentro de cada clube como na mídia. Os primeiros, pela divisão do trabalho, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, olheiros, médicos somente de joelho, outros de quadril, outros de tornozelos etc... E na mídia a profusão de repórteres de campo, especialistas esportivos, comentaristas e tudo mais que ele denomina como “inflação esportiva”.
Dante conhecia como poucos os caminhos da corrupção e desta forma afirmava ser o esporte "um enorme campo fértil para embusteiros", ou seja, enganadores, mentirosos e sedutores, afirmando ser, principalmente o futebol, dominado por estes personagens, que com a ajuda da mídia criaram denominações "modernas" para realizar a mesma coisa. Foi assim que surgiram as expressões: futebol moderno, futebol espetáculo, esporte com sentido de empresa, esporte realista, esportistas que representam o país, todos como meios de um mesmo fim, desenvolver o esporte como indústria e o agigantamento dos lucros, obviamente com uma aparência de apoio social.
Acreditava ser uma debilidade patológica do ser humano essa crença nos parasitas do esporte, passada através da criação de palavras e expressões falsas, feitas para enganar o povo e repetidas mais de mil vezes.
O jornalista analisa também as eleições de diretoria realizadas dentro dos clubes de futebol, nas quais verdadeiras oligarquias comandam por muitos anos, somente largando o seu controle quando morrem, ou estão doentes ou ainda quando os processos de corrupção vêm à tona. Em nome deste processo os dirigentes falam sempre em avanços administrativos e na necessidade de mantê-los, ampliá-los, tudo feito sem qualquer transparência, sem informações verdadeiras e com apoio da mídia.
O escritor argentino não perdeu de vista que os melhores futebolistas são na verdade os piores desportistas e pensava o campo de preconceito existente entre o futebol europeu e o sul-americano diante das estruturas dos estádios e a necessidade de proteção, coisa inexistente nos nossos espaços. A crítica de Dante vale até os dias hoje nos quais seguimos não tendo os melhores estádios, mas os melhores jogadores. Ele diz que os jogadores argentinos de hoje são mais educados que os anteriores, ou seja, toca sutilmente no processo civilizatório.
Não escapou de seu pensar as orgias feitas no futebol argentino com o dinheiro alheio, com o dinheiro do povo, nas negociações de jogadores, estruturas, festas e obviamente na corrupção. A desonestidade é mostrada como um estilo rotineiro de vida, naturalizado, imposto ao senso comum e nunca punido, algo muito parecido com o Brasil e acobertado pelo Estado, que necessita desta situação para retirar dividendos políticos de alcance demarcadamente populista.
A velha proposição de que a corrupção e os desmandos estariam somente na estrutura amadora, mas que o profissionalismo acabaria com isto tendo em vista a visão empresarial, mostra-se totalmente falsa. O futebol na Argentina, assim como no Brasil, torna-se impune frente ao Estado, institucionaliza a fraude, ou seja, o direito àquilo que é proibido por lei ou moralmente inaceitável.
E, finalmente, nesse livro absolutamente espetacular, justamente porque toca em temas que só agora começam a aparecer, Dante ataca o futebol, comparando-o a um fertilizante estatal no qual dirigentes, atletas e treinadores fazem do jogo uma forma descarada de ação política a favor dos poderosos e quase nunca dos despossuídos. Esta política é a que acaba transformando um bando de cínicos em orgulho nacional.
Esse é Dante Panzeri, um grande jornalista que foi capaz de atuar no mundo do esporte e nunca se omitir, dizendo a verdade e demonstrando como fazer. Uma leitura apaixonante.
Nilso Ouriques é professor de Educação Física.
Retirado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.