Correio da Cidadania

As veias abertas do esporte na América Latina

0
0
0
s2sdefault


Eduardo Galeano escreveu com a finura, a sensibilidade de um poeta e com a radicalidade de um militante político. Fez algo mágico. Homem de muitos olhos, sutileza emocional, capacidade crítica e, acima de tudo, um ser que não se submeteu aos poderosos, enfrentando os desafios de peito aberto. É assim que gostaria de apresentar mais esse autor que também pensou o esporte com beleza.

Galeano, como é mais conhecido, nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Ali, foi chefe de redação do semanário "Marcha" e diretor do Jornal "Época". Exilado em Buenos Aires, fundou e dirigiu a revista "Crisis". Também viveu na Espanha. No início de 1985 voltou a sua terra natal, residindo em Montevidéu. Foi autor de mais de quarenta livros, traduzidos em mais de vinte países e, acima de tudo, foi um jornalista de mão cheia.

Recebeu inúmeros prêmios na América Latina e no mundo, mas ficou imensamente conhecido por sua obra "As veias abertas da América Latina", uma análise crítica do processo de roubo e exploração dos países pobres de “nuestra américa” pelos poderosos, pelo imperialismo.
 
Galeano gostava de esporte e principalmente de futebol, e aí colocou o seu dedo e sua inteligência crítica em um livro muito bonito: "El futbol a sol y sombra", publicado no Brasil em 1995. Afirma ele que tudo que não conseguiu fazer com as pernas, jogando futebol, procurou fazer com as mãos, escrevendo.

Neste livro que todos deveriam ler, Galeano exerceu a sabedoria sociológica, filosófica e econômica de um uruguaio que conhecia seu tempo em nossas condições de dependência e exploração econômica. E, com a inteligência que lhe coube, atravessou uma série de assuntos e personagens relacionados ao futebol, como o amor, a infância, o poder, o medo, a guerra, a indignação, a corrupção. Através de historietas contou o seu tempo vivido no esporte, ou melhor, seu tempo de observador agudo do futebol.

O livro apresenta a história do futebol, do jogador, goleiro, ídolo, dos fanáticos pelo jogo, o momento do gol, o árbitro, o diretor técnico, tudo sempre com uma visão crítica, diferenciada. Galeano descreve o futebol enquanto teatro, o futebol dos tecnocratas, dos especialistas, observa com sutileza a linguagem do jogo, o futebol como uma guerra dançada, percebe a diferença e o calor dos estádios latino-americanos diante dos europeus.

Discorre sobre o futebol dizendo que só é ópio do povo na visão de intelectuais conservadores, vê a bola como bandeira das nações, com base no patriotismo, no nacionalismo, cita alguns monstros sagrados dos gramados por todo mundo, avalia a presença dos negros e a invenção de certas jogadas, como a bicicleta de Leônidas da Silva ou como chama, “la chilena”. E agrega que essa jogada foi inventada mesmo por Ramón Unzaga, jogador do Colo-Colo, sendo apresentada na Europa em 1927, para espanto geral de todos.

Eduardo Galeno tampouco deixa de expor as forças ocultas e os mistérios das crenças como a macumba e outras manifestações da magia que envolvem até hoje o futebol e suas raízes. Ele ainda recorda alguns mundiais e suas características. Analisa Pelé, salientando que ele conseguiu entrar onde não era permitida a presença de negros, mas que de seu bolso nunca caiu uma única moeda para os pobres. Elogia Cruyff pela postura de não ter jogado o mundial da Argentina em 1978, por discordar da realização da Copa do Mundo num país dominado por uma ditadura militar.

Observa a “telecracia” que força a realização dos jogos do mundial de 1986 no sol do meio-dia, para favorecer a venda dos jogos pela televisão, mesmo sob todos os protestos dos jogadores. Mostra a fala de João Havelange, que mandou os jogadores jogarem e calarem a boca, e assim foi feito. Ou seja, os principais protagonistas do espetáculo não possuíam nenhum direito, e nem voz.

Em "Futebol a sol e sombra", Galeano exerce o poder de ocultar e descobrir, sombrear e iluminar, o que é fácil de ver e o que não se vê, denunciando o que está oculto. A denúncia ao longo das páginas está explícita, colocada de maneira certeira, como um gol. Qualquer liberal, progressista ou marxista da década de 80 conheceu e respeitou Galeano, principalmente depois do “As Veias Abertas da América Latina”, mas, no esporte e mais especificamente no futebol ele era e ainda é um desconhecido.

Na primeira parte de "Futebol sol e sombra" Galeano narra estórias, contos agradáveis de várias situações e personagens. Já na segunda parte exerce a sutileza de fazer de suas linhas poéticas a denúncia explícita da miséria do futebol e suas podridões. O jornalista Galeano transforma-se em analista social, crítico. Para ele o sol é o futebol puro, alegre, combustível social de um povo, uma nação. Já as sombras são a corrupção, a desonestidade, a falta de caráter dos ídolos e dirigentes, da burocracia, ou tecnoburocracia como preferia falar.

Em algumas partes de seu texto Galeano é um saudosista, romântico, nostálgico, ao procurar, no passado, o futebol desprovido de interesses econômicos, como o jogo das crianças no quintal da casa, um jogo pelo jogo, a brincadeira pela brincadeira e não mais o jogo como rendimento, lucro ou negócio. Nesse diapasão vai criticando a Fifa e os mercenários do esporte, os que jogam sem a alma do esporte tradicional, um escapismo, hoje infantil. E afirma: "a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Na medida em que o esporte se fez indústria foi se desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar porque sim. Neste mundo de final de século, o futebol profissional condena o que é inútil e torna inútil o que não é rentável".

Assim o autor vai questionando a obrigatoriedade de ganhar, vencer, ter um contrato, dinheiro, lucro. E mostra como isso sugou toda alegria e a paixão de jogar por jogar, por prazer, ou seja, a beleza foi morrendo aos poucos. Para muitos isto reportaria a um moralismo aristocrático de Galeano. Mas ele insiste e, na sua lógica, o dinheiro corrompe, assim como na política, nas artes, nas universidades em todos os campos, inclusive no futebol, que hoje é mais um espetáculo, como diria Guy Debord.      

Galeano entende o capitalismo, compreende a mais valia empresarial e ideológica tal como mostrou Ludovico Silva, assim como o papel do jornalismo esportivo corrupto e chantagista que Dante Panzeri denunciava. Ele sabe muito bem que o processo do futebol espetáculo é irreversível, e aponta que a realidade dos clubes-empresas, a exclusão da população pobre dos estádios, os roubos, a corrupção e a burocracia esportiva só irão crescer. Não errou.

Ele utiliza sua inteligência e sua pena para falar sobre clubes, os ídolos e seu papel neste jogo sujo. Mostra a função histórica que desempenharam jogadores como Zico, Maradona, Platini, Cruyff e Pelé, só para citar alguns a quem ele se reporta de maneira específica, extremamente inteligente e verdadeira. E também relata a vida e obra esportiva de João Havelange, Sepp Blatter, bem como de empresas como Adidas e outras dos amigos da elite dirigente internacional corrupta. Afirma que a Fifa é uma monarquia que detém tanto poder, que nem Stálin conseguiu ter. Uma monarquia que possui sua própria justiça, acima de qualquer outra.       

Galeano condena a lógica do automatismo esportivo, da divisão do trabalho, da velocidade e da força, do rendimento, que tomou conta do futebol demonstrada pela enorme quantidade de profissionais no departamento de futebol. Nos clubes já não se vê criatividade, os dribles e a magia. Tudo está aprisionado em esquemas táticos e padrões definidos, com a preocupação de ganhar e manter os lucros dos patrocinadores. Mas, diz Galeano, a genialidade dos jogadores não pode ser aprisionada, deve estar solta. No seu livro pode-se sentir o desencanto com o futebol atual, baseado na mecânica do jogo, na postura ideológica dos ídolos vendidos e na corrupção do sistema. Haveria como culpá-lo?

Mas, ao contrário de muitos autores, ele trata o futebol como cultura nacional e popular na América Latina. Irônico, reforça a ideia de que aqui, na América Latina, as crianças já nascem gritando gol. O futebol se incorporou aos diferentes países associando-se à música, à dança e à malandragem, coisa que nada tem a ver com sua formação original, inglesa.

O que temos aqui é algo original, e como diria Darcy Ribeiro, é produto de um povo novo, miscigenado, uma mistura de negros, índios e brancos de vários matizes. A verdadeira unidade da América Latina está na sua diversidade, essa riqueza gigantesca, e essa identidade baseada na diversidade não poderia ser traída copiando modelos europeus, pobres. O futebol da América Latina está baseado no prazer e na alegria de jogar, e não no dever de ganhar. Galeano insiste que no Brasil, por exemplo, em qualquer bairro pode não haver uma igreja, mas haverá sempre um campo de futebol.

O autor uruguaio ainda passa pela narrativa das ditaduras latino-americanas denunciando a exploração política dos chefes militares como Pinochet, que exigiu que o clube mais popular do Chile, o Colo-Colo, o colocasse como presidente vitalício, ou Geisel, no Brasil e outros tantos ditadores que usaram e abusaram do prestígio do futebol para iludir o povo.

Galeano afirma que o futebol é parecido com Deus, pela devoção que desperta em muitos “crentes” e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais. Para ele a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. À medida que o futebol transforma-se em uma indústria, é desterrado da beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar.

O escritor se exaspera com esse futebol de protagonistas e muitos espectadores. Um futebol que existe somente para olhar, transformado num dos negócios mais lucrativos do mundo. Um futebol que não é mais organizado para jogar, mas para impedir que se jogue.

Para ele, brincar com a bola é ser como o pássaro que canta sem saber que canta. Diz que no mundo do fim de século (ele escreve ainda no século 20) principia um novo futebol que vai fugir da mecânica da busca do lucro. E afirma que ninguém ganha nada com essa loucura, pois o futebol apenas faz com que os homens voltem a ser meninos que brincam com um balão de ar, ou como o gato brincando com um novelo de lã, ou um bailarino dançando levemente. O futebol alegria é como o balão que sobe ao ar, livre, ou como o novelo que rola, jogando, sem motivo, sem relógio e sem juiz.       

O novo futebol pelo qual Galeano esperava na beira do fim do século 20 infelizmente não chegou. A tecnocracia do esporte profissional transformou o jogo em pura velocidade e muita força, renunciando a alegria, atrofiando a fantasia e proibindo a ousadia. Mas, para a sorte de todos os que amam o futebol, vez em quando aparece nos campos alguém atrevido que sai do roteiro e comete o disparate de driblar toda a equipe rival, além do juiz e todo público, simplesmente pelo puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade.

Leia também:

América Latina e os intelectuais do esporte: a riqueza escondida

Burguesia e gangsterismo no esporte

Nilso Ouriques é professor de Educação Física. Retirado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC

0
0
0
s2sdefault