Correio da Cidadania

O distrital misto é majoritário disfarçado

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O procedimento que traduz o voto do eleitor em cadeira no parlamento (ou seja, em poder real) ocupa, não por acaso, um lugar central em qualquer debate sobre reformulação da legislação eleitoral. Com destaque especial para a definição do tipo de voto. Sempre houve, nas democracias contemporâneas, uma disputa surda entre os que advogam a engenharia eleitoral que privilegia a obtenção da governabilidade, princípio do voto distrital ou majoritário, e os defensores do voto proporcional, que se define pela primazia da representação.

Não há, no mundo inteiro, sequer dois sistemas eleitorais idênticos. Cada país tem um arranjo singular, decorrente das especificidades históricas e da luta política permanente. Apesar desta imensa diversidade, todo o modelo particular está atravessado pela prevalência de um destes dois tipos de voto. Ou seja, se localiza em algum ponto do gradiente que tem num dos polos o distrital puro, majoritário, e no outro a busca da proporcionalidade perfeita.

O pensamento conservador, que tem como tarefa consolidar o que já é dominante, busca o aumento da eficiência governamental à custa da redução da representatividade. Não pode, é claro, descurar da representação, mas adota para ela a visão controladora do formalismo procedimental da “cidadania regulada”.   

Os defensores do voto proporcional, por sua vez, priorizam o fortalecimento da representação como expressão plural do ativismo cidadão. Para eles, governabilidade não é sinônimo de capacidade estatal de governar, mas adequação das estruturas institucionais ao dinamismo da vida social.

A permanência do voto proporcional entre nós, apesar de todas as distorções que lhe descaracteriza o conteúdo, tem sido um incômodo para os conservadores brasileiros. Em um país continental, marcado por enorme diversidade cultural e por desigualdades sociais e regionais profundas, a representação proporcional transforma cada eleição em risco potencial para as forças dominantes.

Por isso mesmo, nos espasmos de democracia que intercalam o contínuo de golpismos, autoritarismos, ditaduras que, da colonização aos nossos dias, tem marcado a nossa história, o conservadorismo demanda uma engenharia eleitoral restritiva e, ao mesmo tempo, tem dificuldade de estabelecê-la.

Para superar tal dificuldade, os formuladores mais articulados do nosso conservadorismo buscaram respaldo na experiência eleitoral da Alemanha do pós-guerra, o famoso “misto alemão”. A primeira aparição da proposta surgiu, em meados dos anos 90, no relatório do Senador Sérgio Machado, então no PSDB do Ceará. Aquele mesmo que de gravador oculto desvelou segredos de seus colegas de roubalheira. Era tucano emplumadíssimo, depois, pelas mãos do PMDB, ocupou cargos no escalão girafa dos governos petistas e agora desfila de tornozeleira. Paradoxos da política brasileira.

A proposta que reaparece agora, a julgar pelo noticiário no bojo de mais uma insuspeitada afinidade tucano-petista, está ancorada nos mesmos termos definidos daquele relatório dos anos 90. Os objetivos são os mesmos. A falácia argumentativa também. Chamam o distrital misto de “proporcional personalizado”. Não é verdade. Procuram vendê-lo como a forma eficaz para superar as distorções (que de fato existem) do modelo atual, mas apresentam tais distorções como inerentes ao sistema proporcional (o que é falso).

São inúmeros os estudiosos da legislação eleitoral comparada que compartilham a mesma opinião: a essência do sistema misto alemão é distrital-majoritária. Senão vejamos. Nele, o eleitor tem dois votos e, formalmente, a distribuição das cadeiras no parlamento é feita a partir do chamado “segundo voto” na lista partidária. Esse dado, em tese, garantiria o princípio proporcional. Mas isso se dá quando a proporção já se realizou, na prática, a partir de clivagens locais do chamado “primeiro voto” no distrito uninominal. Ou seja, o segundo voto, proporcional, é sobredeterminado pelo primeiro, distrital majoritário.

Não há prova mais contundente de tal tese do que a análise da série eleitoral alemã. Segundo José Giusti Tavares (“Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas”, Relume-Dumará, Rio, 1994), o modelo “misto alemão”, em termos de concentração partidária, é em tudo semelhante ao distrital puro. Basta ver a concentração acelerada ocorrida na Alemanha desde que tal modelo foi implantado. Em 1949, 15 partidos competiram e 11 obtiveram representação. Em 1953, 17 competiram e 6 conseguiram cadeiras no parlamento. Em 1957, 14 competiram e só 4 alcançaram representação. A partir de 1961, o sistema se cristalizou naquilo que os especialistas chamam de “dois partidos e meio”. Partidos pequenos cumprem função subalterna de “flexibilizar” eventuais alternâncias de governo entre os dois grandes. Uma lógica muito próxima do bipartidarismo que tipifica o sistema majoritário.

A razão para que tal consequência se produza é simples. Ela decorre da natureza do modelo. Toda a ambiência, o clima, o ordenamento das forças na campanha eleitoral, tudo isso é diretamente determinado pela disputa majoritária no distrito uninominal. O “segundo voto” define a proporção (já realizada pela lógica da disputa no distrito) das cadeiras conquistadas, mas é o “primeiro voto” que as ocupa prioritariamente. Os eleitos pelo sufrágio distrital têm cadeira garantida. Os da lista, que não disputarem simultaneamente no distrito, ficam com as vagas que sobraram. Se sobrarem.

No caso de o partido eleger mais deputados nos distritos do que o número de cadeiras que o voto de lista lhe assegura (aconteceu mais de uma vez na Alemanha) fica estabelecido o chamado “prêmio de maioria”, mandatos excedentes que fazem aumentar o número total das cadeiras no parlamento.

A proposta do distrital misto, como os fantasmas que reaparecem nos momentos trevosos, está de novo na pauta. Seu objetivo estratégico é claramente conservador: construir uma engenharia política que sacrifica a representação em favor da governabilidade, entendida como a bitola estreita que facilite e garanta a reprodução do sistema dominante. Na investida anterior, a dificuldade da redistritalização (mantido o número de deputados, o Brasil teria que ser dividido em 513 distritos) ajudou a barrar a catástrofe.

Agora, além desta questão, digamos, técnica, é fundamental desmascarar a propaganda enganosa: o distrital misto é majoritário disfarçado.


Léo Lince

Sociólogo

Léo Lince
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