Correio da Cidadania

Cinco polêmicas sobre a derrota da esquerda

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Deixa o teu coração seguir à tua frente e procura alcançá-lo, provérbio popular árabe.

1. A grande discussão das eleições é sobre as razões da derrota da esquerda. Pior ainda porque já estamos em situação defensiva há oito anos. Há muito cansaço no ativismo, há muita confusão nos balanços, e o perigo de desânimo. Mas a primeira controvérsia é com aqueles que, surpreendentemente, argumentam que a esquerda não sofreu uma derrota duríssima. Afinal o PT elegeu mais prefeitos e vereadores do que em 2020, desconhecendo que isso ocorreu em cidades muito pequenas. Tampouco o governo Lula teria sofrido uma derrota eleitoral, porque em muitas capitais, citando como exemplos Rio de Janeiro e Belo Horizonte no Sudeste, Recife no Nordeste, ou Belém na Amazônia, os prefeitos eleitos pelo PSD, MDB ou PSB são aliados no marco da Frente Ampla.

Esta avaliação otimista desconsidera que o núcleo duro do Centrão está engajado em uma estratégia de aliança com o bolsonarismo “sem Bolsonaro”. Corresponde, também, a esta posição o balanço insólito de que a extrema-direita teria saído enfraquecida porque candidatos apoiados por Bolsonaro perderam eleições no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia e Curitiba. Desvaloriza o fato “monumental” de que o Centrão não está construindo uma “terceira via”, mas uma Frente com a extrema-direita para a presidência. Lidera quem arrasta.

A subestimação do neofascismo é fatal e a pior das conclusões, porque prepara uma derrota em 2026. Estas posições “negacionistas” da derrota são insustentáveis. Análises enviesadas precisam se apoiar em um “grão” de verdade para fundamentar conclusões falsas. “Exageros” que buscam redução de anos transformando derrotas em vitórias são desonestas. Direita e extrema-direita venceram em 90% das cem cidades com duzentos mil eleitores ou mais, a coluna vertebral do Brasil. Não há “mágica” diante de um desfecho tão ruim, até catastrófico, depois de um ano e meio de governo Lula-3.

2. A segunda é com aqueles que admitem a derrota, mas defendem que a esquerda não deveria ter se apresentado independente nas eleições, mas apoiado candidatos da centro-esquerda ou centro-direita. Uma parcela influente da direção do PT, que encontrou seu porta-voz em Quaquá, eleito prefeito em Maricá, tem defendido que a derrota eleitoral confirmou que a esquerda deveria ter feito em outras capitais uma aliança semelhante à do Rio de Janeiro, onde o PT não apresentou candidatura própria, e apoiou a reeleição de Eduardo Paes do PSD. Em entrevista Jilmar Tatto foi mais longe e defendeu que teria sido possível disputar contra a influência de Tarcísio de Freitas uma aliança para apoiar a reeleição de Ricardo Nunes. Ou outros que esgrimiram a ideia absurda de que Boulos não teria sido um bom candidato, porque a esquerda deveria ter apoiado Tabata Amaral. A versão da narrativa Ciro Gomes de 2018 contrabandeada para 2024.

A pergunta que fica é se não aprendemos nada desde o golpe institucional contra Dilma Rousseff. Entre as muitas avaliações erradas sobre a derrota da esquerda nas eleições municipais esta é a mais radical e perigosa. Trata-se da defesa de uma rendição: a esquerda não teria condições de disputar a hegemonia política com a extrema-direita, e deveria apoiar candidatos burgueses rivais do bolsonarismo. Ela tem como premissa uma avaliação errada da vitória de Lula nas eleições de 2022: derrotamos Bolsonaro, em primeiríssimo lugar, porque foi construída uma Frente Ampla no segundo turno. Essa conclusão é parcial e enviesada, porque desvaloriza dois fatores muito mais importantes que a presença de Alckmin como candidato a vice, ou a presença de Simone Tebet nos palanques: a) o impacto do negacionismo antivacina de Bolsonaro na pandemia; b) a presença de Lula como candidato.

3. Outra versão de uma avaliação semelhante é que a esquerda poderia ter apresentado candidatura própria unificada, mas devíamos ter feito um “giro ao centro” no programa. Ou seja, as candidaturas de Boulos e Maria do Rosário teriam tido um perfil à esquerda demais. Táticas eleitorais não precisam ser sempre as mesmas, evidentemente. Podem e devem mudar diante das circunstâncias. O papel da esquerda é lutar pela consciência média dos trabalhadores e do povo. Isso só pode ser feito através de mediações. Táticas são uma linha política que deve responder às possiblidades, mas respeitar, também, os limites que a correlação social e política de forças condiciona. Táticas que não mudam são uma estratégia permanente.

Não fosse assim a esquerda estaria defendendo o mesmo programa revolucionário desde a Comuna de Paris no século XIX. Nada menos do que isso seria capitulação. Leninismo não é a defesa do programa máximo. Não é a agitação de que uma revolução é necessária. Já saímos do “jardim de infância” da luta política. Na verdade, as campanhas de candidatos de esquerda, em todo o país, compreenderam as condições adversas, e procuraram reduzir as elevadíssimas taxas de rejeição, acertando ou errando, mas sem sucesso. Este ajuste era incontornável.

Não ocorreu um “giro ao centro” em São Paulo e, por isso, as pressões mais fortes estão se expressando na crítica ao Boulos por “radicalismo”, não por moderação. Mas esta crítica é desproporcional, portanto, injusta. Este balanço não desautoriza que existiram erros, porque eles aconteceram, por exemplo no que remete ao programa para a segurança pública, mas não foram irreparáveis, e não são eles que explicam as derrotas. Ao contrário, nossas candidaturas, diante das amplas massas, foram “empurradas” para a esquerda por dois fatores: a) porque ocorreu uma polarização entre a direita e a extrema-direita; b) porque prevaleceu uma hostilidade frontal contra a esquerda com o uso de métodos monstruosos.

4. A esquerda perdeu porque virou identitária? Em que grande cidade do país os eixos centrais das candidaturas de esquerda foram esses? Em nenhuma. E seria verdade que, sem a defesa das reivindicações das mulheres, negros e LGBTs, a esquerda teria maior audiência? Sem alertar o perigo do aquecimento global em aliança com os ambientalistas a esquerda teria mais autoridade? Sem defender os movimentos indígenas teríamos mais respeito? Não, não é verdade. Se a esquerda não defender os movimentos sociais que se fortaleceram nos últimos dez anos romperia relações com a nova geração ativista.

Será, realmente, verdade que não dialogamos com a “periferia”? Parece mais complicado. Afinal, o MTST, em São Paulo, não é o maior movimento de luta por moradia popular na extrema-periferia? A verdade é que a extrema-direita ganhou no Tucuruvi, em Pirituba, ou na Vila Guilherme, que não são a extrema-periferia, porque a maioria social nestes distritos são trabalhadores com CLT que ganham mais do que 2 salários-mínimos. Outra versão, mas simétrica, desta avaliação é feita pelos grupos de extrema-esquerda que defendem que o PSol deveria ter se posicionado como oposição de esquerda ao governo Lula, portanto, sem coligação com o PT. Mas esta linha foi testada por três partidos da esquerda radical, em São Paulo, e suas campanhas foram invisíveis, e os resultados impublicáveis.

5. Perdemos porque nossos inimigos ganharam? Explicações circulares não são suficientes, e é verdade que cometemos erros. Mas não perdemos “para nós mesmos”. Não são os erros táticos de uma campanha de dois meses que explicam uma derrota por um milhão de votos de diferença em São Paulo. Nesta escala, um mínimo de equilíbrio é reconhecer que os fatores são outros. Não podemos nos enganar a nós mesmos: estamos na defensiva. Sim, perdemos, porque a relação social e política de forças evoluiu mal desde a vitória de Lula.

A avaliação de que era possível vencer as eleições, pelo menos em cidades em que Lula venceu em 2022, como São Paulo e Porto Alegre, revelaram-se, excessivamente, otimistas. Não era. Na verdade, foi por muito pouco que existiu um segundo turno na capital gaúcha, e que Boulos ficou na frente de Marçal. O que é que tem que mudar? As eleições não foram um “plebiscito” do governo Lula, mas as apostas feitas no Palácio do Planalto tiveram consequências.

Ainda há tempo até 2026. No entanto, se a conclusão do governo é que é necessário ceder mais às pressões burguesas, realizar cortes no orçamento, sacrificar políticas públicas chaves como o BPC, ou seguro desemprego, ou abono salarial, então estaremos nos equilibrando na vertigem da beira do abismo.

Valério Arcary é historiador e professor aposentado do IF-SP.

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